São Paulo, quinta-feira, 08 de setembro de 2005

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COMIDA

O incomparável paladar da Hungria



Foie gras e vinho doce são algumas das iguarias da gastronomia húngara

RITA LOBO
ESPECIAL PARA A FOLHA, EM BUDAPESTE

Fui conhecer a capital do país de origem da minha avó Juliska (pronuncia-se Iuliskó, com "s" de carioca). Pela primeira vez, não comprei todos os guias de viagem que encontrei pela frente, não pesquisei na web a história do país ou os lugares imperdíveis da cidade nem liguei para todas as pessoas que pudessem me fornecer qualquer tipo de informação. Kárász é o meu sobrenome húngaro, e isso era tudo o que eu precisava saber para a minha ida a Budapeste. O meu objetivo não era tomar o melhor Tokay, o mais famoso vinho húngaro, ou conhecer o hotel mais bacana da cidade. Queria aproveitar a viagem para descobrir o que há de húngaro em mim. O fato, no entanto, é que, logo no primeiro jantar em Budapeste, comi o melhor foie gras da minha vida. E aqui começa a nossa história. Gundel (www.gundel.hu) é o mais importante restaurante da cidade. E não parece haver controvérsia. Resolvi fazer uma reserva para a noite seguinte. Da entrada, vi que as luzes do salão principal estavam apagadas. No verão, o jantar é servido no pátio de um jardim bem cuidado. As mesas são forradas com toalhas brancas, os talheres são todos de prata, e os copos, de cristal. A atmosfera é agradável, e não se percebe por completo a imponência do local, um casarão no parque da cidade.
O cardápio, bem estruturado, é extenso sem ser cansativo. Os pratos estão divididos de maneira peculiar: entradas frias, entradas quentes, sopas, peixes de água doce, peixes de água salgada, pratos principais e especialidades húngaras. O maior destaque, porém, está na seção que lista os sete pratos feitos com o "incomparável fígado de ganso húngaro", a única parte do menu que ganha adjetivo. Achei curiosa a descrição e decidi que o meu jantar começaria pela iguaria mais "atraente" do cardápio. Escolhi as fatias de fígado de ganso grelhadas, com maçã assada e molho de sourcherry com balsâmico.
O sommelier chegou com uma taça de Tokaji Aszú, o mais doce vinho de sobremesa húngaro, clássica harmonização para fígado de ganso. Quatro gomos de uma maçã assada formavam um leque que se esparramava ao lado de quatro filezinhos grelhados de foie gras, parcialmente cobertos com o molho, em cuja textura de xarope revelavam-se algumas "cerejinhas amargas". Além do equilíbrio dos sabores que compõem o prato (a doçura da maçã e a acidez do molho), o fígado, aqui, tem algo de especial. Talvez pelo processo de cozimento, ao ser grelhado livra-se do excesso de gordura e ganha um sabor levemente defumado, típico das grelhas sobre o carvão.
No dia seguinte, volto ao restaurante: preciso saber o segredo do fígado de ganso húngaro, de fato, "incomparável". Chego na hora marcada, mas Kalmám Kozma, gerente geral do Gundel, está numa reunião. Sua secretária me recebe oferecendo uma volta pelo restaurante. À luz do dia, descubro toda a sua magnificência. Subimos uma escada com paredes lotadas de fotos de personalidades como a rainha da Inglaterra, o presidente da França e o papa João Paulo 2º. No andar superior, seis salas privativas, que servem para pequenas recepções ou jantares, antecedem um enorme salão, "com capacidade para mais de 250 pessoas". No subsolo, a adega estoca muitos vinhos franceses, italianos, espanhóis e, principalmente, húngaros. O salão principal, em estilo art nouveau, fica no térreo, assim como o jardim e o bar, todo revestido em rádica, onde Kozma já está à minha espera.
Estendo a mão e digo que estou impressionada com a conservação do local -o restaurante teve seu início em 1894 e, durante o regime comunista, de 1948 a 1988, pertenceu ao Estado. Ele conta que, em 1990, dois anos após o Partido Comunista Húngaro ter decretado a sua própria dissolução, o restaurante foi comprado pela dupla George Lang, restaurateur de origem húngara, dono do Café des Artistes, em Nova York, e seu sócio, Roland Lauder, filho de Estée Lauder. No ano seguinte, quando a retirada das tropas soviéticas do território húngaro se completou, o casarão passou por uma reforma de seis meses, que lhe devolveu as características arquitetônicas originais. A reabertura foi em 1992, e, segundo Kozma, a restauração do Gundel representa um símbolo da "ressurreição" de Budapeste para muitos húngaros. E a minha porção húngara não pode deixar de entender. Mas isso é outra história.

O incomparável fígado de ganso húngaro
Já em São Paulo, levo para a minha avó Juliska uma garrafa de Tokaji Aszú (em húngaro, pronuncia-se "tocoí assu") e uma lata de foie gras. Ela sorri e parece voltar no tempo. Diz lembrar "das mulheres abrindo o bico do ganso para colocar os grãos de milho, um a um".
"Foie gras", literalmente, quer dizer "fígado gordo". E, de fato, é obtido por meio da alimentação forçada do animal. Por isso, o assunto entrou na pauta de ativistas americanos que pretendem colocar o produto na lista negra de seus compatriotas. Os produtores dizem que os métodos artesanais não causam sofrimento aos animais, somente os métodos industriais. Mas, recentemente, o governador da Califórnia, o republicano Arnold Schwarzenegger, aprovou uma lei que proíbe a prática e, com isso, deve exterminar a produção no Estado. A opinião pública também ganhou simpatizantes no meio gastronômico americano. O renomado chef Charlie Trotter, um pouco depois de ganhar um prêmio humanitário pelo trabalho com a comunidade de Chicago, decidiu banir o foie gras do cardápio de seus restaurantes.
Na Europa, porém, apesar da simpatia pela causa, as tradições gastronômicas são patrimônio cultural dos povos. E, na Hungria, a qualidade do foie gras é motivo de orgulho. Por lá, dizem que metade do foie gras consumido na França é de origem húngara, mais especificamente de Alfold, região de grandes planícies, onde boa parte dos produtores criam seus animais em condições naturais.

Rita Lobo é jornalista e chef de cozinha, diretora do site www.panelinha.com.br e autora do livro "Cozinha de Estar" (ed. Códex)


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