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CONTARDO CALLIGARIS
Nova Orleans e a confiança básica no mundo
Duas ou três vezes por ano, o
prédio onde moro fica sem
energia por um tempo. Apesar
desses cortes, previstos ou imprevistos, não vivo num suspense
energético: sigo esticando o dedo
para chamar o elevador, convencido de que, lá em cima, alguém
me ama. Sem isso, como aceitaria
viver no décimo primeiro andar?
Karl Jaspers, o filósofo alemão,
dizia que a ciência pede ao usuário uma espécie de fé. De fato, podemos não saber como funcionam o telefone, a televisão, o cabo, mas acreditamos no seu funcionamento.
Para os psicanalistas, essa fé na
ciência e na técnica é parte de
uma disposição mais geral: a
"confiança básica no mundo".
Ela acompanha cada sujeito que
viu a luz num ambiente que o
acolheu com carinho e simpatia.
Suponhamos: ninguém nos chutou quando estávamos no desamparo da primeira infância; quando chorávamos, alguém comparecia (mesmo que fosse para nos
enfiar uma chupeta na boca
quando, na verdade, precisávamos que trocassem a fralda). Em
regra, os que tivemos essa sorte (a
grande maioria dos humanos)
continuamos pensando durante a
vida toda que os outros e o mundo nos querem bem.
Conseqüência: podemos viver
na Califórnia, embora esteja certo
que a região será devastada por
um terremoto; podemos viver numa cidade como Nova Orleans,
abaixo do nível do mar, protegida
apenas por diques antiquados;
podemos viver em andares altos,
fora do alcance de qualquer escada de bombeiros.
A confiança básica no mundo é
também um alicerce da ordem social, pois ela vale como um lembrete permanente que diz: há alguém que cuida, alguém que se
importa. Nos termos de nossa infância: os adultos voltarão para
nos dar comida e ainda para verificar se a gente se comporta direito.
Não há pesquisas que meçam o
número de interrupções da energia elétrica que é necessário para
que eu pare de confiar na Eletropaulo. Em compensação, existe a
teoria das janelas quebradas, que,
nos anos 90, revolucionou nossas
idéias em matéria de manutenção da ordem social (George Kelling e Catherine Coles, "Fixing
Broken Windows", arrumando
janelas quebradas). Experiência
básica em psicologia social: se
abandono um carro num bairro
de classe media, ele será depenado só depois de oito semanas. Se,
antes de abandoná-lo, aplico algumas boas marteladas nos faróis
e na lataria, ele será depenado em
três dias. Outra: num metrô coberto de grafite a criminalidade é
muito mais alta do que no mesmo
metrô se ele for lavado e limpado
a cada noite.
Por quê? Os faróis quebrados e
os grafites assinalam que ninguém se importa. E, se ninguém se
importa, tudo é permitido. Será
que isso basta para entender as
rondas armadas de malfeitores e
vigilantes em Nova Orleans?
O prefeito da cidade tentou explicar a onda de saques por indivíduos e gangues lembrando que,
além dos serviços básicos, também parou de funcionar o comércio de droga, o que teria deixado
alguns sujeitos bem "nervosos". É
verdade: faz parte da confiança
básica acreditar que o traficante
da esquina estará lá de novo
amanhã. Mas, para explicar o
acontecido, não é preciso recorrer
à falta de droga (ou de nicotina).
Em Nova Orleans, a ruína da
confiança básica foi brutal: o telefone emudeceu, a força acabou, o
celular perdeu o sinal, e ninguém
respondia aos gritos de ajuda.
Ora, para alguns, abriu-se assim um tempo de desespero. Para
outros, a constatação de que
"ninguém se importa" foi sedutora e esperada. Nada de estranho
nisso: afinal, saquear lojas de armas e circular pelas ruas à procura de comida, de água, de gasolina e de outros humanos que possam ser aterrorizados é o roteiro
de numerosas narrativas populares.
Pense nos filmes da tríade de
Mad Max, em "O Mensageiro" e
"O Segredo das Águas", em "Fuga
de Los Angeles" ou "Fuga de Nova York", ou no romance "The
Stand" ("A Dança da Morte"), de
Stephen King. Pense em videogames como "Duke Nukem" ou
"Doom".
Não conheço um adolescente
que, em alguma vez, não tenha
sonhado com a destruição do
mundo (o mundo em que confiamos) e com a aventura de um recomeço radical.
A primeira tarefa é sempre a de
armar-se, porque, num universo
zerado, não vale o prestígio dos
anos ou da experiência, do saber
ou do dinheiro: a autoridade é
justamente reduzida à sua expressão mais simples e mais facilmente contestável, que é a força.
Qual é o charme desse momento do lobo?
Acontece que o amor que nos
acolhe no mundo, instituindo
nossa confiança em "alguém que
cuida", torna-nos devedores ou,
no mínimo, reféns de um passado
que é a história dos outros que já
estavam lá e nos receberam. Por
isso a catástrofe que acaba com
nossa confiança no mundo é a última fronteira da autonomia: se
não há mais alguém que cuida,
ninguém nos antecede, ninguém
está acima da gente: somos livres
como só pode ser livre quem não
tem história.
É a versão extrema do mito,
moderno e banal, do "self-made
man", o homem que não precisa
de ninguém.
Aposto que, nas ruas de Nova
Orleans, há alguns desapontados
com a volta gradual a um mundo
"confiável".
@ - ccalligari@uol.com.br
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