São Paulo, sábado, 08 de setembro de 2007

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MANUEL DA COSTA PINTO

Madame Bovary no bordel Brasil


Modo como o tema da prostituição domina a cena em "Paraíso Tropical" ecoa romance de Flaubert


O LANÇAMENTO pela editora Nova Alexandria de volume comemorativo dos 150 anos de "Madame Bovary", de Flaubert, no momento em que "Paraíso Tropical" chega a seu clímax, ajuda a ler as filigranas do trabalho de Gilberto Braga. Matéria sobre "Paraíso Tropical" com depoimentos de intelectuais e a coluna de Marcos Augusto Gonçalves publicadas na Ilustrada reiteraram a idéia de que as telenovelas são para o Brasil atual o que os folhetins foram para o século 19.
Não há dúvida: Gilberto Braga, Sílvio de Abreu ("Belíssima") e Aguinaldo Silva ("Senhora do Destino") bebem em Balzac e companhia. Acrescente-se que, assim como os escritores oitocentistas inoculavam elementos perturbadores em retratos de época, nossos teledramaturgos devem seu sucesso a ênfases sutis na anomalia social.
O paralelo com "Madame Bovary" torna-se precioso quando lemos os autos do processo contra Flaubert (incluídos na edição), pois o promotor Ernest Pinard faz uma leitura do romance que é uma pérola de sensibilidade literária a serviço do mais obtuso moralismo.
Ao resumir a "queda" de Emma Bovary -mulher de um médico de província que, intoxicada pela leitura de folhetins sentimentais, aspira a uma vida galante, envereda pelo adultério e termina se suicidando-, Pinard chama a atenção para as inversões quase imperceptíveis pelas quais o escritor faz da lascívia o estado natural das coisas.
Em dado momento, o narrador diz que Emma é vítima "da degradação do casamento e das desilusões do adultério" -frase na qual Pinard detecta argutamente uma perversão da ordem: a descrição do matrimônio como forma de moléstia que nem a mais abnegada infidelidade consegue mitigar.
E em outra passagem, na qual Flaubert narra a extrema-unção de Emma como um êxtase erótico, Pinard observa "a mistura do sagrado e do voluptuoso" que faz desses "Costumes de Província" (subtítulo do romance) o "cântico do adultério" escrito por um artista "hábil em corrupções". Guardadas as proporções, Gilberto Braga faz algo semelhante. Mais do que retratar uma elite corrupta, "Paraíso Tropical" propõe que a prostituição é a argamassa e o modo de funcionamento da sociedade.
A relação entre o oportunista Olavo e Bebel, garota de programa que tenta sair do calçadão, ainda pertence ao tema do arrivismo, característico dos folhetins, aplicado agora ao país do compadrio. Braga vai além: quase todas as personagens, heróis e vilões, de alguma maneira têm um pé na zona.
Paula, a gêmea boa, foi criada por uma cafetina. Antenor tem vergonha do fato de ser, literalmente, filho da puta. Marion agencia acompanhantes para ricaços. E Joana, ao tentar se prostituir, descobre ser filha do proxeneta Jáder, que manteve com sua mãe um caso que cheira a rufianismo. Em "Paraíso Tropical", a sacanagem de alcova é o ar que elites e classes subalternas respiram; impregna tudo silenciosamente e revela a mecânica das outras sacanagens, que estão nas manchetes dos jornais.


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