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São Paulo, quarta-feira, 08 de outubro de 2003

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MARCELO COELHO

Ponto cego

Ela era uma mocinha simpática e obediente. Família opressora, educação antiquada, cidade do interior. Trabalhava num escritório como datilógrafa. Apareceu a oportunidade de ir para um poderoso escritório da capital. Talvez, na cidade grande, fosse possível ter aulas de dança, o sonho da jovem era ser bailarina. No novo emprego, instituem um concurso: as datilógrafas mais rápidas seriam selecionadas para trabalhar diretamente com o Chefe. A mocinha é escolhida. A cidade é Berlim, o ano é 1942, e o chefe dela era o próprio Führer.
"Eu Fui a Secretária de Hitler", documentário em cartaz no Unibanco Arteplex, consiste em duas ou três longas entrevistas que a senhora Traudl Junge, já com 80 anos, resolveu finalmente conceder sobre esse período tenebroso de sua biografia.
Logo nas primeiras frases, vemos que ela não tem nada de nazista. Considera o genocídio um ato hediondo, o nazismo uma aberração inqualificável e chama Hitler de monstro. Suas palavras, seu olhar e seu rosto são firmes e sinceros.
A câmera quase não se move, e deixa ver apenas alguns detalhes do apartamento de Traudl Junge: dicionário e bons livros na estante, um belo quadro de flores com moldura discreta, uma estatueta moderna. Trata-se de senhora de bom gosto, que mais tarde teve sucesso profissional como jornalista na área de ciências e que confessa, com lucidez e culpa, todo o seu espanto: como fui ter admiração e carinho por Adolf Hitler?
Ela conta seu primeiro encontro com o Führer. Estava nervosa. Outra candidata no concurso tivera crise de choro incontrolável ao deparar-se com o tirano. Quem surge é um senhor afável, mais velho do que nas fotos, acolhedor e paternal. Para acalmá-la, Hitler diz com voz suave, bem modulada: "Não se preocupe. Por mais erros que você cometa ao datilografar, não serão tantos quanto os meus".
Analisada retrospectivamente, a frase tem o mesmo tipo de humor cínico e sinistro que se vê em algumas passagens de "Moloch", filme de Alexander Sokúrov sobre um ameno fim de semana de Hitler com a namorada e seus auxiliares mais próximos. Para a pequena secretária, sem dúvida, o efeito daquelas palavras era confortador.
Em toda explosão, diz Frau Junge, há um núcleo que permanece imóvel, pacífico e seguro. Crises constantes de fúria? Gesticulação caricatural? Poses histéricas? Obsessão com judeus? Anormalidades, esquisitices? Não, afirma a datilógrafa, nada disso eu presenciei. Ela ficou com Hitler até o final.
Podemos, claro, imaginar que Frau Junge tenha omitido alguns fatos que a incriminassem. Cuidava apenas da correspondência pessoal do Führer, de assuntos burocráticos: afirma que conversas decisivas, documentos importantes não estavam a seu alcance.
O documentário não mostra nenhuma imagem da época: a câmera fixa-se apenas no rosto da entrevistada. Um letreiro nos informa que Traudl morreu um dia depois da estréia do filme. Dá para ficar pensando se essa secretária existiu de fato, ou se tudo não seria uma armação, uma impostura. Seja como for, a sensação de que estamos diante de algo inacreditável não se deve à estranheza do depoimento; não há pormenores bizarros nem informações surpreendentes. Tudo parece insólito por ser, afinal, mais simples, mais compreensível, mais humano e coerente do que deveria.
É muito provável que sempre exista uma espécie de "efeito humanização" no convívio com esses tiranos. O monstro pega o guardanapo, espirra, queixa-se de dor de cabeça; já é o bastante para que isso pareça uma gentileza, um ato generoso de sua parte. O cotidiano na corte de Stálin, segundo o historiador Simon Montefiore em livro recentemente publicado na Inglaterra, era familiar e caloroso: crianças eram ninadas ao som de canções georgianas, dançava-se e ria-se bastante.
Ninguém é herói para seu camareiro; ninguém é genocida tampouco.
Será preferível assim? A conclusão pode ser reconfortante: no fim das contas, não haveria pessoas integralmente perversas... todos têm seu lado bom. Penso no contrário. A "humanização" de Hitler agrava, e não diminui, o peso de seus atos.
A própria entrevistada não se deixa perdoar. Comenta que nem toda mocinha de sua idade estava cega diante do nazismo. Julgar os atos e pensamentos da jovem secretária de Hitler não é, naturalmente, o mais importante. O documentário não nos interessa pelo que possa esclarecer a respeito de Traudl Junge, mas, sim, a respeito de nós mesmos.
É muito difícil verificar o quanto ela sabia a respeito do genocídio, o quanto de voluntário e de involuntário havia em seu fascínio pelo líder. No mínimo, as pessoas sabiam das incontáveis violências cometidas contra os judeus. Não sabiam, claro, de tudo, mas sabiam o suficiente.
A questão não é exatamente "saber", ter informação mental a respeito deste ou daquele ato de barbárie. Existe uma diferença entre o simples ato de saber e o ato de "conscientizar-se", o de integrar esse conhecimento à nossa vivência real. Nesse aspecto, o caso de Traudl Junge não é tão estranho ou isolado quanto possa parecer.
Todos nós sabemos, por exemplo, que coisas horríveis se passam na Febem, nos presídios, nas delegacias. Sabemos, mas não "incorporamos" a informação. Alguém teria razão em perguntar, daqui a cem ou 200 anos, como pudemos nos manter indiferentes. Claro que sou contra o que acontece. "Mas você não fez nada?" Bem, contribuo com a Abrinq e não costumo votar em pessoas comprometidas com a tortura, com o extermínio, com a violência policial. Vivemos num Estado democrático; nossas autoridades não são, de modo geral, nazistas, nem eu. Para um rapaz a quem espancam com barras de ferro porque foi abandonado na rua desde o nascimento, esta ressalva é bem pouco significativa.

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