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MARCELO COELHO
Ponto cego
Ela era uma mocinha simpática e obediente. Família
opressora, educação antiquada,
cidade do interior. Trabalhava
num escritório como datilógrafa.
Apareceu a oportunidade de ir
para um poderoso escritório da
capital. Talvez, na cidade grande,
fosse possível ter aulas de dança, o
sonho da jovem era ser bailarina.
No novo emprego, instituem um
concurso: as datilógrafas mais rápidas seriam selecionadas para
trabalhar diretamente com o
Chefe. A mocinha é escolhida. A
cidade é Berlim, o ano é 1942, e o
chefe dela era o próprio Führer.
"Eu Fui a Secretária de Hitler",
documentário em cartaz no Unibanco Arteplex, consiste em duas
ou três longas entrevistas que a
senhora Traudl Junge, já com 80
anos, resolveu finalmente conceder sobre esse período tenebroso
de sua biografia.
Logo nas primeiras frases, vemos que ela não tem nada de nazista. Considera o genocídio um
ato hediondo, o nazismo uma
aberração inqualificável e chama
Hitler de monstro. Suas palavras,
seu olhar e seu rosto são firmes e
sinceros.
A câmera quase não se move, e
deixa ver apenas alguns detalhes
do apartamento de Traudl Junge:
dicionário e bons livros na estante, um belo quadro de flores com
moldura discreta, uma estatueta
moderna. Trata-se de senhora de
bom gosto, que mais tarde teve
sucesso profissional como jornalista na área de ciências e que
confessa, com lucidez e culpa, todo o seu espanto: como fui ter admiração e carinho por Adolf Hitler?
Ela conta seu primeiro encontro
com o Führer. Estava nervosa.
Outra candidata no concurso tivera crise de choro incontrolável
ao deparar-se com o tirano.
Quem surge é um senhor afável,
mais velho do que nas fotos, acolhedor e paternal. Para acalmá-la, Hitler diz com voz suave, bem
modulada: "Não se preocupe. Por
mais erros que você cometa ao
datilografar, não serão tantos
quanto os meus".
Analisada retrospectivamente,
a frase tem o mesmo tipo de humor cínico e sinistro que se vê em
algumas passagens de "Moloch",
filme de Alexander Sokúrov sobre
um ameno fim de semana de Hitler com a namorada e seus auxiliares mais próximos. Para a pequena secretária, sem dúvida, o
efeito daquelas palavras era confortador.
Em toda explosão, diz Frau Junge, há um núcleo que permanece
imóvel, pacífico e seguro. Crises
constantes de fúria? Gesticulação
caricatural? Poses histéricas? Obsessão com judeus? Anormalidades, esquisitices? Não, afirma a
datilógrafa, nada disso eu presenciei. Ela ficou com Hitler até o final.
Podemos, claro, imaginar que
Frau Junge tenha omitido alguns
fatos que a incriminassem. Cuidava apenas da correspondência
pessoal do Führer, de assuntos
burocráticos: afirma que conversas decisivas, documentos importantes não estavam a seu alcance.
O documentário não mostra
nenhuma imagem da época: a câmera fixa-se apenas no rosto da
entrevistada. Um letreiro nos informa que Traudl morreu um dia
depois da estréia do filme. Dá para ficar pensando se essa secretária existiu de fato, ou se tudo não
seria uma armação, uma impostura. Seja como for, a sensação de
que estamos diante de algo inacreditável não se deve à estranheza do depoimento; não há pormenores bizarros nem informações
surpreendentes. Tudo parece insólito por ser, afinal, mais simples,
mais compreensível, mais humano e coerente do que deveria.
É muito provável que sempre
exista uma espécie de "efeito humanização" no convívio com esses tiranos. O monstro pega o
guardanapo, espirra, queixa-se
de dor de cabeça; já é o bastante
para que isso pareça uma gentileza, um ato generoso de sua parte.
O cotidiano na corte de Stálin, segundo o historiador Simon Montefiore em livro recentemente publicado na Inglaterra, era familiar e caloroso: crianças eram ninadas ao som de canções georgianas, dançava-se e ria-se bastante.
Ninguém é herói para seu camareiro; ninguém é genocida
tampouco.
Será preferível assim? A conclusão pode ser reconfortante: no fim
das contas, não haveria pessoas
integralmente perversas... todos
têm seu lado bom. Penso no contrário. A "humanização" de Hitler agrava, e não diminui, o peso
de seus atos.
A própria entrevistada não se
deixa perdoar. Comenta que nem
toda mocinha de sua idade estava
cega diante do nazismo. Julgar os
atos e pensamentos da jovem secretária de Hitler não é, naturalmente, o mais importante. O documentário não nos interessa pelo que possa esclarecer a respeito
de Traudl Junge, mas, sim, a respeito de nós mesmos.
É muito difícil verificar o quanto ela sabia a respeito do genocídio, o quanto de voluntário e de
involuntário havia em seu fascínio pelo líder. No mínimo, as pessoas sabiam das incontáveis violências cometidas contra os judeus. Não sabiam, claro, de tudo,
mas sabiam o suficiente.
A questão não é exatamente
"saber", ter informação mental a
respeito deste ou daquele ato de
barbárie. Existe uma diferença
entre o simples ato de saber e o
ato de "conscientizar-se", o de integrar esse conhecimento à nossa
vivência real. Nesse aspecto, o caso de Traudl Junge não é tão estranho ou isolado quanto possa
parecer.
Todos nós sabemos, por exemplo, que coisas horríveis se passam na Febem, nos presídios, nas
delegacias. Sabemos, mas não
"incorporamos" a informação.
Alguém teria razão em perguntar, daqui a cem ou 200 anos, como pudemos nos manter indiferentes. Claro que sou contra o que
acontece. "Mas você não fez nada?" Bem, contribuo com a
Abrinq e não costumo votar em
pessoas comprometidas com a
tortura, com o extermínio, com a
violência policial. Vivemos num
Estado democrático; nossas autoridades não são, de modo geral,
nazistas, nem eu. Para um rapaz
a quem espancam com barras de
ferro porque foi abandonado na
rua desde o nascimento, esta ressalva é bem pouco significativa.
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