São Paulo, quarta-feira, 08 de outubro de 2008

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MARCELO COELHO

Tubarões, gatos, barracudas


Quando foi divulgado que Sarah Palin tinha o apelido "barracuda", lembrei-me de Brecht

BARRACUDAS SÃO tubarões pequenos. Quando foi divulgado que Sarah Palin, a candidata a vice na chapa republicana de John McCain, tinha o apelido de "barracuda", lembrei-me de um texto de Brecht. "Se os tubarões fossem humanos", Brecht fez uma menina perguntar ao seu pai, "seriam mais gentis com os peixes pequenos?".
O pai da menina responde: "Certamente. Cuidariam para que as armadilhas para pegar peixinhos fossem construídas com todo o conforto... Nas horas vagas, dariam para eles aulas de arte e de moral".
Ele continua. "Se os tubarões fossem humanos, naturalmente teriam guerras contra tubarões estrangeiros. E fariam seus próprios filhotes guerrear por eles."
Sarah Palin, no seu triunfal discurso na convenção republicana, apontou para o rosto do próprio filho, que partiria no dia seguinte para a Guerra do Iraque.
Era um daqueles rapazes sem expressão, cabelo cortado rente, rosto redondo e superalimentado.
Volto a Brecht: saiu agora em DVD o filme baseado em sua "Ópera dos Três Vinténs". A música mais famosa desse espetáculo, composta por Kurt Weill, é sem dúvida "Mack the Knife", celebrizada na versão de Louis Armstrong.
Mack é um sujeito terrível, e a letra da música diz assim: "O tubarão tem dentes, que se vêem bem na cara. Mack tem uma faca, que ninguém consegue ver". Está claro, como se diz em Portugal, que esse assassino violento e dissimulado, cujas armas não se vêem, equivale na canção ao próprio capitalismo.
O filme de Pabst, rodado em 1930, pode ter envelhecido bastante no que diz respeito à linguagem, mas a "moralidade" da história brechtiana choca ainda hoje o espectador, e até dá medo pensar o quanto pode ser atual.
Mack, o rei dos ladrões ingleses, celebra um casamento com a be- la Polly. O pai da moça é uma espé- cie de pastor televisivo antes do tempo. O bom homem dirige, com eficácia capitalista, uma espécie de sindicato de mendigos, mobilizáveis facilmente.
Poderia ser um líder do MST, um gângster chefe de camelôs que possuísse controle sobre a fiscalização da prefeitura... Não há inocentes nessa ópera. Um sistema criminoso tende a fazer de todos, pobres ou ricos, criminosos também.
Não é sinal de direitismo, espero, dizer que essa visão "além do bem e do mal" desapareceu do pensamento de esquerda, hoje cristianizado, rousseauísta e vitimizante. Por outro lado, sabemos no que deu a idéia de uma esquerda "desalmada", para quem nada era crime se feito em nome do socialismo. O resultado, além de tétrico para a humanidade, foi nulo para a esquerda -com a vitó- ria, nos últimos 20 anos, do capital desenfreado.
Num misto de medo e espírito fácil do "eu não disse?", critica-se agora, com a crise financeira, a ganância de Wall Street. Uma reportagem na "Veja" desta semana mostra, contudo, também a ganância do cidadão americano comum. Houve pobretão que se endividasse para comprar casa melhor, e assim várias vezes em seguida, pensando tornar-se grande proprietário imobiliário, enquanto durasse a farra dos financiamentos fáceis. Onde estão os inocentes e iludidos?
Voltemos, novamente, à "Ópera dos Três Vinténs". Não vale a pena contar a história toda. Descontente com o casamento de sua filha, o rei dos mendigos arma um grande pânico nas ruas de Londres. Banqueiros fogem de seus escritórios. Na confusão, o sindicato dos ladrões toma conta do maior banco de Londres. O filme termina assim, sem moralização possível.
Talvez nos falte um Brecht para contar a história do apoio da Casa Branca aos "gatos gordos" de Wall Street. Um detalhe bastaria para dar o tom de toda a ópera. O secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, já convidou alguns especialistas para gerir o fundo bilionário que supostamente haverá de salvar a economia mundial. São antigos colegas seus, recrutados entre ex-funcionários do Goldman Sachs.
Afinal, ninguém melhor do que eles para entender de títulos podres, os seus e os alheios. O que você queria? Que chamassem um sindicato de ladrões ou de mendigos? Ou gente mais inocente? Assim são as coisas.
Sarah Palin, que se orgulha do filho alistado na guerra, deve saber o que está fazendo. Barracudas, gatos gordos e tubarões não precisam posar de bonzinhos. Nem disfarçar sua irracionalidade.
PS - Férias. Volto no dia 12 de novembro. Até lá.

coelhofsp@uol.com.br


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