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LIVROS/LANÇAMENTOS
Em "Minha Ántonia", Willa Cather escreve sobre suas origens pelo olhar de um quase-protagonista
Retrato enviesado revela memórias americanas
FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Tendo somente as palavras de
que se valer para construir
mundos, a literatura não permite
que se despreze nem mesmo uma
só delas; cada qual tem -ou, ao
menos, deveria ter- um desígnio
a cumprir. Por exemplo, um título
ou uma epígrafe pode ser muito
mais do que acessório ou pista e
chegar a ter o papel de mote, de
bandeira de uma obra.
É o que acontece em "Minha
Ántonia", romance da norte-americana Willa Cather (1873-1947) que inaugura a coleção
Grandes Letras, da editora Códex.
Culta e combativa no meio jornalístico e literário de sua época, Cather certamente se dera ao estudo
da obra de Virgílio (70-19a.C.),
antes de escolher para epígrafe
deste romance de 1918 o verso
"Optima dies... prima fugit".
Pinçado das "Geórgicas" do
poeta latino, ele resume à perfeição o espírito de nostalgia que
percorre "Minha Ántonia": os
melhores dias são os primeiros a
fugir.
Numa chave livre, "Minha Ántonia" pode ser lido como as memórias da jovem Wilella Siberth
Cather, que nasceu no Estado de
Virgínia, mas cresceu no Nebraska, assim como o personagem-narrador de seu romance, Jim
Burden. Não parece arriscado dizer, pois, que Jim é um alter ego
juvenil de Cather.
A primeira noção que Jim Burden, órfão aos dez anos, tem do
mundo dos avós com quem vai
morar é sensual. Do que vê, ficam
impressões, paisagens. E é lá que
lhe aparece o novíssimo: Ántonia
Shimerda, filha de uma família da
Boêmia (ex-Tchecoslováquia).
Novíssima, porque estrangeira,
uma entre tantas vindas da Europa, buscando fortuna, avizinhando-se aos "nativos" Burdens.
Na primeira parte, o romance se
dedica a como Jim vê, ao lado de
Ántonia, passarem as estações,
com a natureza indomável até o
limite do trágico, moldando os
rumos dos que lidam com ela. Sob
esse ângulo, o livro pode ser classificado como um "romance de
formação" dos Estados Unidos,
"terra do bravo".
Observada, porém, sob um aspecto menos imediato, a obra de
Cather se insere numa outra modalidade de romance de formação: a que vai "pelas bordas", narrando apenas lateralmente o desenvolver de Jim; é só pela existência da menina que se apreendem os fatos relativos ao garoto: a
adolescência, seu primeiro amor,
sua maturidade e, por fim, sua
nostalgia de sua infância.
Permanece desconhecido ao leitor tudo o que passa ao largo dos
mundos de Ántonia -primeiro,
o da lida na terra, depois, o da
criadagem que serve à burguesia
incipiente da cidadezinha de
Black Hawk.
Sabemos, por exemplo, desde o
princípio, que Jim Burden se casaria; mas nunca é dado saber em
que circunstâncias -posto que,
para a estrutura do romance, é
muito mais importante que se
possa imaginar, com minúcia, o
cheiro de roupa limpa das dinamarquesas que trabalhavam na
lavanderia do vilarejo.
Como Jim frisa no início, sua
narrativa dá ao leitor a sua Ántonia, e não um retrato que se pretenda absoluto da moça. É um retrato igualmente enviesado que
obtemos desse quase-protagonista -e, em última instância, de sua
inventora.
Minha Ántonia
My Ántonia
Autor: Willa Cather
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Editora: Códex
Quanto: R$ 38 (336 págs.)
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