UOL


São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS/LANÇAMENTOS

Em "Minha Ántonia", Willa Cather escreve sobre suas origens pelo olhar de um quase-protagonista

Retrato enviesado revela memórias americanas

FRANCESCA ANGIOLILLO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Tendo somente as palavras de que se valer para construir mundos, a literatura não permite que se despreze nem mesmo uma só delas; cada qual tem -ou, ao menos, deveria ter- um desígnio a cumprir. Por exemplo, um título ou uma epígrafe pode ser muito mais do que acessório ou pista e chegar a ter o papel de mote, de bandeira de uma obra.
É o que acontece em "Minha Ántonia", romance da norte-americana Willa Cather (1873-1947) que inaugura a coleção Grandes Letras, da editora Códex. Culta e combativa no meio jornalístico e literário de sua época, Cather certamente se dera ao estudo da obra de Virgílio (70-19a.C.), antes de escolher para epígrafe deste romance de 1918 o verso "Optima dies... prima fugit".
Pinçado das "Geórgicas" do poeta latino, ele resume à perfeição o espírito de nostalgia que percorre "Minha Ántonia": os melhores dias são os primeiros a fugir.
Numa chave livre, "Minha Ántonia" pode ser lido como as memórias da jovem Wilella Siberth Cather, que nasceu no Estado de Virgínia, mas cresceu no Nebraska, assim como o personagem-narrador de seu romance, Jim Burden. Não parece arriscado dizer, pois, que Jim é um alter ego juvenil de Cather.
A primeira noção que Jim Burden, órfão aos dez anos, tem do mundo dos avós com quem vai morar é sensual. Do que vê, ficam impressões, paisagens. E é lá que lhe aparece o novíssimo: Ántonia Shimerda, filha de uma família da Boêmia (ex-Tchecoslováquia). Novíssima, porque estrangeira, uma entre tantas vindas da Europa, buscando fortuna, avizinhando-se aos "nativos" Burdens.
Na primeira parte, o romance se dedica a como Jim vê, ao lado de Ántonia, passarem as estações, com a natureza indomável até o limite do trágico, moldando os rumos dos que lidam com ela. Sob esse ângulo, o livro pode ser classificado como um "romance de formação" dos Estados Unidos, "terra do bravo".
Observada, porém, sob um aspecto menos imediato, a obra de Cather se insere numa outra modalidade de romance de formação: a que vai "pelas bordas", narrando apenas lateralmente o desenvolver de Jim; é só pela existência da menina que se apreendem os fatos relativos ao garoto: a adolescência, seu primeiro amor, sua maturidade e, por fim, sua nostalgia de sua infância.
Permanece desconhecido ao leitor tudo o que passa ao largo dos mundos de Ántonia -primeiro, o da lida na terra, depois, o da criadagem que serve à burguesia incipiente da cidadezinha de Black Hawk.
Sabemos, por exemplo, desde o princípio, que Jim Burden se casaria; mas nunca é dado saber em que circunstâncias -posto que, para a estrutura do romance, é muito mais importante que se possa imaginar, com minúcia, o cheiro de roupa limpa das dinamarquesas que trabalhavam na lavanderia do vilarejo.
Como Jim frisa no início, sua narrativa dá ao leitor a sua Ántonia, e não um retrato que se pretenda absoluto da moça. É um retrato igualmente enviesado que obtemos desse quase-protagonista -e, em última instância, de sua inventora.


Minha Ántonia
My Ántonia
    
Autor: Willa Cather
Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges
Editora: Códex
Quanto: R$ 38 (336 págs.)



Texto Anterior: "Plínio Marcos - Melhor Teatro": Fragilidade vibra nas entrelinhas
Próximo Texto: "O Homem que Morreu Três Vezes": Obra desvela o "Chacal brasileiro"
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.