|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Lixo, utopias e chaminés
Apesar do colapso das utopias, um sinal de progresso é o modo com que se trata o lixo hoje
MUITO JÁ se falou sobre a "lata de lixo da história", à
qual, conforme se pensava
inicialmente, estavam condenados
os representantes do liberalismo
econômico. Mais tarde, os sinais se
inverteram, e socialistas de todos os
matizes terminaram sendo encaminhados para o mesmo destino.
Para lembrar uma frase de Valéry,
a lata de lixo revelou-se grande o suficiente para que todos coubessem
nela, e a própria metáfora, por fim,
também se tornou vítima daquilo
que nos manuais modernos de cozinha recebe o nome de "descarte".
Apesar do tão decantado colapso
das utopias, alguns sinais de progresso podem ser registrados na história humana, e um deles está no
modo com que hoje as famílias da
classe média tratam do lixo -o lixo
de verdade, não o metafórico.
Escrevo isto pensando num produto que vi anunciado outro dia e
que descrevo mais adiante. Trata-se
de uma lata de lixo bastante inovadora; mas falar em "lata de lixo", hoje em dia, é força de expressão. Sou
do tempo em que as latas eram feitas
de metal. Podem ser vistas ainda no
canal Boomerang, da TV a cabo, onde servem de moradia para o gato
Manda-Chuva e sua turma.
A lata de lixo ficava no quintal, ao
lado do botijão de gás, até a hora em
que passavam os lixeiros. Esses simplesmente pegavam na alça da lata e
esvaziavam seu conteúdo; o contato
com os detritos domésticos era direto, dispensando qualquer tipo de invólucro. Sacos plásticos de lixo constam, na minha memória, como uma
invenção recente.
Nos prédios de apartamentos, a
coisa era ainda pior. Ao lado da porta
da escada de serviço, o morador encontrava uma espécie de gavetão
branco, com a pintura imitando a
dos fogões e geladeiras, destinado a
receber o lixo do seu apartamento. A
portinhola se abria para um buraco
negro, um extenso duto de detritos,
uma chaminé invertida que terminava no subsolo, onde imagino que
um vasto tonel de lata (nunca o vi)
recebesse a lixarada coletiva.
Quem morasse nos andares de
baixo corria o risco de, na hora de esvaziar a sua lata, topar com a precipitação de imundícies proveniente
dos apartamentos de cima. Contavam-se histórias hediondas: vez por
outra, fetos eram jogados naquela
tubulação, que garantia, no silêncio
da madrugada, o anonimato das empregadas domésticas que tinham
engravidado sem querer.
O cheiro de lixo era constante nos
elevadores e escadas de serviço, às
quais se restringia a circulação da
criadagem. Isso não é nada, claro, se
comparado ao que ocorria em séculos passados, com os escravos encarregados de levar em tinas o que hoje
vai pelos canos de esgoto.
Não sei que fim tiveram os tubos
de lixo vertical dos prédios de apartamentos; esse tipo de progresso é
dos tais em que ninguém repara,
nem se guarda na memória.
As "chaminés do lixo" eram também menos terríveis, em todo caso,
que as chaminés reais. Lendo o prefácio a uma edição brasileira dos
poemas de William Blake ("Canções
da Inocência e da Experiência", editora Crisálida), fiquei sabendo que,
na Londres do século 19, a estreiteza
das chaminés exigia o emprego de
mão-de-obra infantil: só meninos de
cinco ou seis anos podiam subir por
dentro delas.
"Eram vendidos por seus pais aos
empregadores [...] devido ao trabalho que faziam, tinham a rótula do
joelho torcida e a espinha e os tornozelos deformados por toda a vida [...]
Trabalhavam nus, pois as roupas podiam impedi-los de entrar em espaços muito apertados, e também teriam de ser substituídas com muita
rapidez [...] Nas curvas das chaminés, ficavam presos e, às vezes, sufocavam", dizem os prefaciadores do
livro, Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves.
Blake fala de "Dick, Joe, Ned, Jack,
e milhares de varredores / em negros ataúdes, trancados, sem dores",
até que "com chave luminosa, um
anjo apareceu / e abriu-os, livrando
cada menino do seu."
Cabe repetir que as utopias, ora
essa, foram para a lata de lixo da história. Comemore-se então o aparecimento, ao menos, de uma nova lata de lixo no mercado. O utensílio
dispõe de um sensor fotoelétrico, de
modo que sua tampa se abre à simples aproximação do objeto descartado, ou, se for o caso, da mão humana. Facilitará, também, a vida de gatos, cachorros e catadores de latinhas, na hipótese de ser colocada ao
ar livre. Custa cerca de R$ 2 mil nas
lojas especializadas. Mas não será
pedir demais ao progresso, acredito,
se manifestarmos a esperança de
que seu preço diminua com o passar
dos anos.
coelhofsp@uol.com.br
Texto Anterior: Crítica: "Poltergeist" e a importância do cinema de autor Próximo Texto: Teatro na Folha: "O Beijo do Homem" tem leitura gratuita hoje Índice
|