São Paulo, quarta-feira, 08 de novembro de 2006

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MARCELO COELHO

Lixo, utopias e chaminés

Apesar do colapso das utopias, um sinal de progresso é o modo com que se trata o lixo hoje

MUITO JÁ se falou sobre a "lata de lixo da história", à qual, conforme se pensava inicialmente, estavam condenados os representantes do liberalismo econômico. Mais tarde, os sinais se inverteram, e socialistas de todos os matizes terminaram sendo encaminhados para o mesmo destino.
Para lembrar uma frase de Valéry, a lata de lixo revelou-se grande o suficiente para que todos coubessem nela, e a própria metáfora, por fim, também se tornou vítima daquilo que nos manuais modernos de cozinha recebe o nome de "descarte".
Apesar do tão decantado colapso das utopias, alguns sinais de progresso podem ser registrados na história humana, e um deles está no modo com que hoje as famílias da classe média tratam do lixo -o lixo de verdade, não o metafórico.
Escrevo isto pensando num produto que vi anunciado outro dia e que descrevo mais adiante. Trata-se de uma lata de lixo bastante inovadora; mas falar em "lata de lixo", hoje em dia, é força de expressão. Sou do tempo em que as latas eram feitas de metal. Podem ser vistas ainda no canal Boomerang, da TV a cabo, onde servem de moradia para o gato Manda-Chuva e sua turma.
A lata de lixo ficava no quintal, ao lado do botijão de gás, até a hora em que passavam os lixeiros. Esses simplesmente pegavam na alça da lata e esvaziavam seu conteúdo; o contato com os detritos domésticos era direto, dispensando qualquer tipo de invólucro. Sacos plásticos de lixo constam, na minha memória, como uma invenção recente.
Nos prédios de apartamentos, a coisa era ainda pior. Ao lado da porta da escada de serviço, o morador encontrava uma espécie de gavetão branco, com a pintura imitando a dos fogões e geladeiras, destinado a receber o lixo do seu apartamento. A portinhola se abria para um buraco negro, um extenso duto de detritos, uma chaminé invertida que terminava no subsolo, onde imagino que um vasto tonel de lata (nunca o vi) recebesse a lixarada coletiva.
Quem morasse nos andares de baixo corria o risco de, na hora de esvaziar a sua lata, topar com a precipitação de imundícies proveniente dos apartamentos de cima. Contavam-se histórias hediondas: vez por outra, fetos eram jogados naquela tubulação, que garantia, no silêncio da madrugada, o anonimato das empregadas domésticas que tinham engravidado sem querer.
O cheiro de lixo era constante nos elevadores e escadas de serviço, às quais se restringia a circulação da criadagem. Isso não é nada, claro, se comparado ao que ocorria em séculos passados, com os escravos encarregados de levar em tinas o que hoje vai pelos canos de esgoto.
Não sei que fim tiveram os tubos de lixo vertical dos prédios de apartamentos; esse tipo de progresso é dos tais em que ninguém repara, nem se guarda na memória.
As "chaminés do lixo" eram também menos terríveis, em todo caso, que as chaminés reais. Lendo o prefácio a uma edição brasileira dos poemas de William Blake ("Canções da Inocência e da Experiência", editora Crisálida), fiquei sabendo que, na Londres do século 19, a estreiteza das chaminés exigia o emprego de mão-de-obra infantil: só meninos de cinco ou seis anos podiam subir por dentro delas.
"Eram vendidos por seus pais aos empregadores [...] devido ao trabalho que faziam, tinham a rótula do joelho torcida e a espinha e os tornozelos deformados por toda a vida [...] Trabalhavam nus, pois as roupas podiam impedi-los de entrar em espaços muito apertados, e também teriam de ser substituídas com muita rapidez [...] Nas curvas das chaminés, ficavam presos e, às vezes, sufocavam", dizem os prefaciadores do livro, Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves.
Blake fala de "Dick, Joe, Ned, Jack, e milhares de varredores / em negros ataúdes, trancados, sem dores", até que "com chave luminosa, um anjo apareceu / e abriu-os, livrando cada menino do seu."
Cabe repetir que as utopias, ora essa, foram para a lata de lixo da história. Comemore-se então o aparecimento, ao menos, de uma nova lata de lixo no mercado. O utensílio dispõe de um sensor fotoelétrico, de modo que sua tampa se abre à simples aproximação do objeto descartado, ou, se for o caso, da mão humana. Facilitará, também, a vida de gatos, cachorros e catadores de latinhas, na hipótese de ser colocada ao ar livre. Custa cerca de R$ 2 mil nas lojas especializadas. Mas não será pedir demais ao progresso, acredito, se manifestarmos a esperança de que seu preço diminua com o passar dos anos.


coelhofsp@uol.com.br

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