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RESENHA DA SEMANA
A reinvenção do espectador
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Hannah Arendt conta uma
história reveladora sobre
Bertolt Brecht: nos anos 40,
quando estava exilado nos EUA,
o poeta, dramaturgo e homem
de teatro alemão foi visitar um
trotskista, anti-stalinista convicto, que lhe falou da inocência dos réus injustiçados nos abomináveis processos de Moscou. Brecht retrucou: "Quanto mais
inocentes são, mais merecem
morrer". O anti-stalinista, indignado, o pôs dali para fora.
Sem deixar de apontar as relações ambíguas que Brecht manteve com o stalinismo e com o
estado policial da Alemanha
Oriental no final da sua vida,
quando se tornou um misto de
herói nacional e incômodo,
Arendt argumenta em favor da
resposta provocativa e capciosa
do poeta como um dos raros
momentos em que ele se colocou abertamente contra Stálin.
Afinal, o que Brecht queria dizer era que ninguém podia deixar de conspirar contra o stalinismo, por obrigação moral, e
que, se isso era considerado crime, os maiores criminosos eram
os inocentes, os que não conspiravam. É claro que o interlocutor não entendeu assim. Mas a
anedota serve de exemplo para o
tipo de relação de inteligência
que as peças de Brecht procuram criar com o espectador, tornando-o ativo e permeável à lógica e às múltiplas potências e contradições da linguagem.
É essa provavelmente uma das
razões de um belo texto de juventude como "A Santa Joana
dos Matadouros", que expõe a
crise do capitalismo e a luta de
classes - e tem como objetivo
"transmitir um conhecimento,
profundo e adequado à ação,
dos grandes processos sociais da
nossa época" -, não ter caído
com o decorrer dos anos no mero esquematismo didático e
anacrônico.
Ao contrário, com o fim das
utopias, confrontada com a história dos últimos 20 anos, a peça
ganha dimensão ainda mais terrível, embora não menos lúdica.
No momento em que o capitalismo se torna hegemônico e
aparentemente sem alternativas, "o caráter insustentável de
nossa situação" a que se referia
Brecht deixa de estar restrito a
um tipo específico de organização econômica e social para ganhar contornos mais universais.
No centro da peça está uma
militante dos Boinas Pretas
(uma espécie de Exército da Salvação) que acredita na bondade
e no amor da religião como forma de promover um acordo entre os empregados e os patrões
em meio à crise da indústria de
carne de Chicago. Sua experiência sangrenta, porém, vai obrigá-la a tomar consciência, à beira da morte, do antagonismo de
classes, da hipocrisia da religião
e da ilusão das boas intenções.
Lido hoje, à luz do capitalismo
tardio, o jogo de linguagem contido na peça permite outros
pontos de vista, talvez mais
nietzscheanos e menos marxistas. Sobressai a luta. As classes
são apenas lugares que os homens ocupam em rotatividade e
que mudam conforme os contextos. O que permanece é a exploração do homem pelo homem, e a sua autodestruição.
A idéia de que o destino está
na mão dos homens (e não de
Deus), um dos pontos fundamentais do teatro brechtiano,
ganha um novo sentido, mais
desiludido, pois não pode haver
nada pior do que estar na mão
dos homens -a alegria vem da
consciência de que agora ao menos o destino é jogo.
O "bate-boca das classes" a
que se refere Roberto Schwarz
no prefácio à sua tradução passa
a ser assim mais um sinal dessa
condição geral (a que se chama
humana) e menos a possibilidade de superação de uma condição específica.
"Só a força resolve onde impera a força/ E onde há humanos
só os humanos resolvem", diz
Joana já à morte. Como no caso
do anti-stalinista, é preciso estar
permeável a todos os sentidos
dessa fala capciosa para poder
ouvi-la.
A riqueza do teatro épico proposto por Brecht vem de um jogo de linguagem em que o sentido se move como as peças sobre
um tabuleiro. E ao espectador é
cobrada, como a um adversário,
a inteligência para acompanhá-las nesse movimento. Ao contrário da imobilidade do esquematismo didático ou da identificação do teatro dramático
("choro com os que choram e
rio com os que riem"), o teatro
épico propõe um deslocamento
lúdico dos sentidos ("rio de
quem chora e choro com os que
riem"). É o que faz de Brecht um
grande poeta.
A Santa Joana dos Matadouros
Die Heilige Johanna der Schlachthöfe
Autor: Bertolt Brecht
Tradutor: Roberto Schwarz
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 30 (214 págs.)
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