São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

A reinvenção do espectador

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Hannah Arendt conta uma história reveladora sobre Bertolt Brecht: nos anos 40, quando estava exilado nos EUA, o poeta, dramaturgo e homem de teatro alemão foi visitar um trotskista, anti-stalinista convicto, que lhe falou da inocência dos réus injustiçados nos abomináveis processos de Moscou. Brecht retrucou: "Quanto mais inocentes são, mais merecem morrer". O anti-stalinista, indignado, o pôs dali para fora.
Sem deixar de apontar as relações ambíguas que Brecht manteve com o stalinismo e com o estado policial da Alemanha Oriental no final da sua vida, quando se tornou um misto de herói nacional e incômodo, Arendt argumenta em favor da resposta provocativa e capciosa do poeta como um dos raros momentos em que ele se colocou abertamente contra Stálin.
Afinal, o que Brecht queria dizer era que ninguém podia deixar de conspirar contra o stalinismo, por obrigação moral, e que, se isso era considerado crime, os maiores criminosos eram os inocentes, os que não conspiravam. É claro que o interlocutor não entendeu assim. Mas a anedota serve de exemplo para o tipo de relação de inteligência que as peças de Brecht procuram criar com o espectador, tornando-o ativo e permeável à lógica e às múltiplas potências e contradições da linguagem.
É essa provavelmente uma das razões de um belo texto de juventude como "A Santa Joana dos Matadouros", que expõe a crise do capitalismo e a luta de classes - e tem como objetivo "transmitir um conhecimento, profundo e adequado à ação, dos grandes processos sociais da nossa época" -, não ter caído com o decorrer dos anos no mero esquematismo didático e anacrônico.
Ao contrário, com o fim das utopias, confrontada com a história dos últimos 20 anos, a peça ganha dimensão ainda mais terrível, embora não menos lúdica. No momento em que o capitalismo se torna hegemônico e aparentemente sem alternativas, "o caráter insustentável de nossa situação" a que se referia Brecht deixa de estar restrito a um tipo específico de organização econômica e social para ganhar contornos mais universais.
No centro da peça está uma militante dos Boinas Pretas (uma espécie de Exército da Salvação) que acredita na bondade e no amor da religião como forma de promover um acordo entre os empregados e os patrões em meio à crise da indústria de carne de Chicago. Sua experiência sangrenta, porém, vai obrigá-la a tomar consciência, à beira da morte, do antagonismo de classes, da hipocrisia da religião e da ilusão das boas intenções.
Lido hoje, à luz do capitalismo tardio, o jogo de linguagem contido na peça permite outros pontos de vista, talvez mais nietzscheanos e menos marxistas. Sobressai a luta. As classes são apenas lugares que os homens ocupam em rotatividade e que mudam conforme os contextos. O que permanece é a exploração do homem pelo homem, e a sua autodestruição.
A idéia de que o destino está na mão dos homens (e não de Deus), um dos pontos fundamentais do teatro brechtiano, ganha um novo sentido, mais desiludido, pois não pode haver nada pior do que estar na mão dos homens -a alegria vem da consciência de que agora ao menos o destino é jogo.
O "bate-boca das classes" a que se refere Roberto Schwarz no prefácio à sua tradução passa a ser assim mais um sinal dessa condição geral (a que se chama humana) e menos a possibilidade de superação de uma condição específica.
"Só a força resolve onde impera a força/ E onde há humanos só os humanos resolvem", diz Joana já à morte. Como no caso do anti-stalinista, é preciso estar permeável a todos os sentidos dessa fala capciosa para poder ouvi-la.
A riqueza do teatro épico proposto por Brecht vem de um jogo de linguagem em que o sentido se move como as peças sobre um tabuleiro. E ao espectador é cobrada, como a um adversário, a inteligência para acompanhá-las nesse movimento. Ao contrário da imobilidade do esquematismo didático ou da identificação do teatro dramático ("choro com os que choram e rio com os que riem"), o teatro épico propõe um deslocamento lúdico dos sentidos ("rio de quem chora e choro com os que riem"). É o que faz de Brecht um grande poeta.


A Santa Joana dos Matadouros
Die Heilige Johanna der Schlachthöfe
    
Autor: Bertolt Brecht
Tradutor: Roberto Schwarz
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 30 (214 págs.)



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