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LITERATURA
Ian McEwan imerge em níveis diversos de inocência
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Uma das lições que o escritor
americano Henry James ajudou a estabelecer na ficção pós-realista é que tudo depende do
ponto de vista. Afinal, o jovem inglês do romance de Ian McEwan é
vítima das circunstâncias ou
cúmplice dum ato terrível, traidor
de seu país ou homem cegado pela paixão? Depende....
Esta narrativa de McEwan, vencedor do Whitbread Award e do
Booker Prize, é estranha por si.
Mistura uma história de amor (e a
sutil análise envolvida dos meandros do relacionamento humano)
e uma trama de espionagem à
Graham Greene. Há, nas cenas de
maior impacto cruento, uma indisfarçável dose de humor negro.
O técnico em engenharia Leonard Marnham chega em Berlim
em 1955, seis anos antes de o Muro ser erguido. A cidade está repartida em zonas: a dos soviéticos, a dos americanos etc. Segredos políticos e militares são vendidos no mercado negro como
carne no açougue.
Marnham vai trabalhar numa
operação conjunta entre britânicos e americanos. Logo aprende
que a empreitada abrange níveis
de sigilo. Promovido ao terceiro
nível, vê que a operação consiste
na construção de um túnel até o
setor soviético, para plantar uma
estrutura de escuta nos cabos de
comunicação. O túnel foi construído de fato e se chamou Operação Gold.
O rapaz mais tarde vem a saber
que há um quarto nível de informação e até um quinto, do qual
apenas os soviéticos têm ciência.
Marnham aporta inocente nesse
mundo difuso. Ele é virgem nas
relações de espionagem e nas carnais. Quem o introduz nas primeiras é o agente Bob Glass e, nas
segundas, a alemã Maria Eckdorf.
Separada do marido violento,
herói da Segunda Guerra, é Maria
quem chama Marnham de inocente, de puro, de casto. É ela
quem o ensinará que a realidade é
mais complexa, que a linha que
separa "a inocência da experiência" é "arrebatadoramente vaga".
"O relacionamento especial" do
subtítulo do livro pode aludir tanto à precária cooperação entre
britânicos e americanos quanto à
história de Maria e Marnham. A
inocência remete a seu oposto, a
experiência, e ao conhecimento
dos aspectos antes sigilosos das
coisas e, por fim, à conduta correta diante desses frutos proibidos.
Marnham vai descobrir que tudo está implicado. Entre vencedores e vencidos, espiões e espionados, aliados e inimigos, os crimes
hediondos podem ter motivações
nobres (e a inocência como sinônimo de ignorância dos fatos é sucedida pela inocência presumível,
que depende de interpretação) e
podem ser acobertados por interesses menos excelsos.
Como em Kafka (autor de uma
das epígrafes ao romance), Marnham se move numa realidade estranha, que falha em compreender. Mas, ao contrário dos heróis
do tcheco, ele percebe o crime que
cometeu (embora o negue) e se
inteira do sentido de tudo. Esse
sentido só pode ser construído a
partir de um ponto de vista oculto
por quase todo o romance: o de
Maria. É ela, como Molly Bloom,
de "Ulisses", de Joyce, quem fornece a nota completa. Depende
dela, de seu ponto de vista, a chave para o conhecimento.
O Inocente
Autor: Ian McEwan
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42,50 (328 págs.)
Leia entrevista com o autor na Folha
Online - www.folha.com.br/ilustrada
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