São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2007

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Nuno Ramos: o pátio sem luz

O autor se aproxima de seus assuntos com leveza conceitual; seus ensaios são sempre conversa inteligente

NO MUNDO do artista plástico, escritor e ensaísta Nuno Ramos (autor de "Cujo", 1993, e "O Pão do Corvo", 2001), nem os corvos precisam de alimento para se criar, nem as tempestades de quem as colha. Enquanto a angústia dos primeiros ronda, soberana, o leitor-espectador, as segundas se armam e desabam por si, maduras e inevitáveis, arrastando-nos para "dentro do pátio sem luz" de suas obras, instaladas num desvão entre a imensidão do tempo geológico e a melancolia, às vezes tacanha, às vezes opressiva, da história presente e do confinamento individual.
E neste mundo -pintado, esculpido, filmado ou falado, pouco importa o suporte-, a palavra "feita de matéria escura, quase sólida" tem sempre peso vital, expresso tanto na denúncia da família vulgar dos discursos "rouba-tempo", que se alastram, como tapumes ou "pasta confusa", cerceando o olhar, como no esforço de construção da palavra "súbita", de cera resfriada ou cavada na pedra, a que suspende o tempo e cria seu próprio espaço, para falar como ele em "Um Comunicado sobre as Palavras", do livro de 2001.
"Ensaio Geral" tem a forma aberta que o gênero sugere: acolhe projetos de arte pública, realizados ou não (como "El Olimpo", um memorial às vítimas da repressão argentina, que recria em escala um dos galpões sinistros da ditadura, trocando a opacidade dos tijolos pela transparência do vidro e os respiros das janelas e portas pelo luto liso do granito), crítica de arte sobre contemporâneos (Fábio Miguez, Paulo Pasta) ou menos (Goeldi, Hélio Oiticica, Mira Schendel, Amilcar de Castro), textos sobre literatura (Euclydes da Cunha e Nelson Rodrigues), canção e futebol, quase todos tocados pela escolha empática do objeto, de Beckett a Paulinho da Viola e Ademir da Guia.
Nuno Ramos se aproxima de seus assuntos com leveza conceitual, de um ponto de vista que é, a um só tempo, esforço de compreensão paciente e reelaboração de poética própria, às voltas com impasses brasileiros na formalização difícil da matéria local e no embate com a tradição modernista e suas rupturas. Seus ensaios são sempre conversa interessante e inteligente.
Mas é nos roteiros ("Cova Alta", que cava o ar e sepulta um boi nas alturas, suspenso por uma grua, ou "De Giro em Giro", beckettiano triângulo amoroso filmado no centro de um círculo delimitado pelos trilhos sobre os quais corre uma câmera, sob os olhos vulturinos da multidão), nas peças de memória ("Fala Fala Fala Fala", uma evocação do avô, o sanitarista Samuel Pessoa, e "Minha Fantasma", ligado a uma depressão severa de sua mulher) e nos três projetos de exposição ligados à palavra (como "Dois Monólogos", em que voltam Giacometti, cachorros mortos e troncos arrancados pela raiz) que o criador se dá a ver por inteiro, cravando a cunha da sua questão, a que tudo atravessa e de fato importa: "é isto um homem?".


ENSAIO GERAL - PROJETOS, ROTEIROS, ENSAIOS, MEMÓRIA
Autor:
Nuno Ramos
Editora: Globo
Quanto: R$ 52 (416 págs.)
Avaliação: ótimo


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