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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
Nuno Ramos: o pátio sem luz
O autor se aproxima de
seus assuntos com leveza
conceitual; seus ensaios são
sempre conversa inteligente
NO MUNDO do artista plástico,
escritor e ensaísta Nuno Ramos (autor de "Cujo", 1993, e
"O Pão do Corvo", 2001), nem os
corvos precisam de alimento para se
criar, nem as tempestades de quem
as colha. Enquanto a angústia dos
primeiros ronda, soberana, o leitor-espectador, as segundas se armam e
desabam por si, maduras e inevitáveis, arrastando-nos para "dentro
do pátio sem luz" de suas obras, instaladas num desvão entre a imensidão do tempo geológico e a melancolia, às vezes tacanha, às vezes
opressiva, da história presente e do
confinamento individual.
E neste mundo -pintado, esculpido, filmado ou falado, pouco importa o suporte-, a palavra "feita de
matéria escura, quase sólida" tem
sempre peso vital, expresso tanto na
denúncia da família vulgar dos discursos "rouba-tempo", que se alastram, como tapumes ou "pasta confusa", cerceando o olhar, como no
esforço de construção da palavra
"súbita", de cera resfriada ou cavada
na pedra, a que suspende o tempo e
cria seu próprio espaço, para falar
como ele em "Um Comunicado sobre as Palavras", do livro de 2001.
"Ensaio Geral" tem a forma aberta
que o gênero sugere: acolhe projetos
de arte pública, realizados ou não
(como "El Olimpo", um memorial às
vítimas da repressão argentina, que
recria em escala um dos galpões sinistros da ditadura, trocando a opacidade dos tijolos pela transparência
do vidro e os respiros das janelas e
portas pelo luto liso do granito), crítica de arte sobre contemporâneos
(Fábio Miguez, Paulo Pasta) ou menos (Goeldi, Hélio Oiticica, Mira
Schendel, Amilcar de Castro), textos
sobre literatura (Euclydes da Cunha
e Nelson Rodrigues), canção e futebol, quase todos tocados pela escolha empática do objeto, de Beckett a
Paulinho da Viola e Ademir da Guia.
Nuno Ramos se aproxima de seus
assuntos com leveza conceitual, de
um ponto de vista que é, a um só
tempo, esforço de compreensão paciente e reelaboração de poética
própria, às voltas com impasses brasileiros na formalização difícil da
matéria local e no embate com a tradição modernista e suas rupturas.
Seus ensaios são sempre conversa
interessante e inteligente.
Mas é nos roteiros ("Cova Alta",
que cava o ar e sepulta um boi nas alturas, suspenso por uma grua, ou
"De Giro em Giro", beckettiano
triângulo amoroso filmado no centro de um círculo delimitado pelos
trilhos sobre os quais corre uma câmera, sob os olhos vulturinos da
multidão), nas peças de memória
("Fala Fala Fala Fala", uma evocação do avô, o sanitarista Samuel Pessoa, e "Minha Fantasma", ligado a
uma depressão severa de sua mulher) e nos três projetos de exposição ligados à palavra (como "Dois
Monólogos", em que voltam Giacometti, cachorros mortos e troncos
arrancados pela raiz) que o criador
se dá a ver por inteiro, cravando a
cunha da sua questão, a que tudo
atravessa e de fato importa: "é isto
um homem?".
ENSAIO GERAL - PROJETOS, ROTEIROS, ENSAIOS, MEMÓRIA
Autor: Nuno Ramos
Editora: Globo
Quanto: R$ 52 (416 págs.)
Avaliação: ótimo
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