São Paulo, sexta, 9 de janeiro de 1998.




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LIVROS - RESENHAS
O pífio Evangelho segundo Norman Mailer

MARIO SERGIO CORTELLA
especial para a Folha

É quase impossível avaliar a produção literária norte-americana deste século sem oferecer um lugar destacado a Norman Mailer.
Às vésperas de completar 75 anos de idade, suas obras, recheadas de sátira social, antimilitarismo e sarcasmo contra os padrões morais vigentes, são referência obrigatória para a compreensão da América e de seus dilemas.
O próprio autor já dissera, na "Western Review", em 1959, que "o objetivo final da arte é intensificar e, até mesmo, se necessário, exacerbar a consciência moral das pessoas".
Agora, meio século após a publicação de seu primeiro livro, "Os Nus e os Mortos", o romancista se propôs a rever a narrativa evangélica cristã e a reescrevê-la, como se fora a própria versão de um Jesus de Nazaré irado e jocosamente ressentido com as palavras oficiais de Marcos, Mateus, Lucas e João.
Não o fez a contento. Esse seu "O Evangelho Segundo o Filho" (lançado no primeiro semestre nos EUA) é uma obra pueril (e não senil), muito distante da qualidade do magnífico romance (quase homônimo) de José Saramago, ou do auto-de-fé "Entre Todos os Homens", de Frei Betto.
Quando muito, Mailer produziu uma justaposição sintética dos quatro evangelhos canônicos, só que escrita na primeira pessoa, entremeada de falas de um Cristo inseguro, eventualmente tolo e, muitas vezes, debochado.
Poderia ser intenção do autor uma reconstrução iconoclástica, na qual se pudesse "chegar tão perto da verdade quanto possível" (pág. 8), coisa que Mailer tão bem sempre fez em outros escritos. Não o conseguiu neste, mesmo sendo uma leitura fácil, didática em excesso e organizada em 49 curtos capítulos (seguindo o estilo evangélico tradicional).
O didatismo e as gracinhas despontam em inúmeras passagens. Na página 55, por exemplo, Jesus, ao mencionar o mar da Galiléia, diz "que é somente um lago, mas tão grande quanto um mar".
Na página 65, surpreso com sua capacidade de curar, o Nazareno diz que "bastava colocar a mão sobre suas cabeças para expulsar os pequenos diabinhos (sic)".
Em debate com os escribas no interior de uma sinagoga (pág. 71), depois de curar um paralítico, Jesus é por eles questionado sobre como ousava querer perdoar pecados. Resposta humorística do narrador: "Por que procurar razões? O sujeito chegou aqui paralítico e, logo depois, saiu carregando a cama nas costas; talvez tenha mancado um pouco, mas apenas por um momento".
Mais gracinhas? Na página 185, admirado com a agilidade mental de Pilatos e, após descrevê-lo como baixo, nariz pontudo e ombros pronunciados, conclui: "De fato, os narigudos costumam ser inteligentes".
Na página 202, quando Jesus volta, já ressurgido, e Tomé duvida ser Ele mesmo (pedindo para tocar as chagas), observa: "Eis porque é conhecido, até hoje, como Tomé sem fé".
Para quem se dispuser a ler todo o livro (esquecendo-se, por respeito estético, ser ele um trabalho de Mailer), vale a pena deleitar-se com alguns trechos lúdicos.
A página 54, quando nas bodas de Caná, Jesus transforma água em vinho e leva uma carraspana de um anjo por ficar gastando milagres à toa ("Assim como um barril transbordante de mel pode ser esvaziado, o Filho tolo desperdiça seu estoque de milagres").
A página 57, na qual Deus dá aulas de retórica a seu Filho ("Trata de frisar um ponto, qualquer um... Sublinha tua fala com um bordão -'Assim diz o Senhor', por exemplo").
A página 183, quando Judas Iscariotes dá lições de política partidária e imperial a Jesus, desnudando as articulações entre Pilatos, Herodes e o Sinédrio, ressaltando as alianças escusas existentes e afirmando que poderia abandonar o Mestre se fosse estrategicamente necessário. Há mais, muito mais.
Mailer tinha, evidentemente, o direito de escrever o livro. No entanto, poderia ter aberto mão dessa garantia constitucional.

Livro: O Evangelho Segundo o Filho Autor: Norman Mailer Lançamento: Record Quanto: R$ 20 (208 págs.)


Mario Sergio Cortella, 43, professor-doutor do departamento de Teologia e Ciências da Religião da PUC-SP, é o apresentador e um dos mediadores dos "Diálogos Impertinentes"; foi secretário municipal de Educação de São Paulo (gestão Luiza Erundina)



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