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LIVROS - RESENHAS
O pífio Evangelho segundo Norman Mailer
MARIO SERGIO CORTELLA
especial para a Folha
É quase impossível avaliar a produção literária norte-americana
deste século sem oferecer um lugar
destacado a Norman Mailer.
Às vésperas de completar 75
anos de idade, suas obras, recheadas de sátira social, antimilitarismo e sarcasmo contra os padrões
morais vigentes, são referência
obrigatória para a compreensão da
América e de seus dilemas.
O próprio autor já dissera, na
"Western Review", em 1959, que
"o objetivo final da arte é intensificar e, até mesmo, se necessário,
exacerbar a consciência moral das
pessoas".
Agora, meio século após a publicação de seu primeiro livro, "Os
Nus e os Mortos", o romancista se
propôs a rever a narrativa evangélica cristã e a reescrevê-la, como se
fora a própria versão de um Jesus
de Nazaré irado e jocosamente ressentido com as palavras oficiais de
Marcos, Mateus, Lucas e João.
Não o fez a contento. Esse seu
"O Evangelho Segundo o Filho"
(lançado no primeiro semestre nos
EUA) é uma obra pueril (e não senil), muito distante da qualidade
do magnífico romance (quase homônimo) de José Saramago, ou do
auto-de-fé "Entre Todos os Homens", de Frei Betto.
Quando muito, Mailer produziu
uma justaposição sintética dos
quatro evangelhos canônicos, só
que escrita na primeira pessoa, entremeada de falas de um Cristo inseguro, eventualmente tolo e,
muitas vezes, debochado.
Poderia ser intenção do autor
uma reconstrução iconoclástica,
na qual se pudesse "chegar tão
perto da verdade quanto possível"
(pág. 8), coisa que Mailer tão bem
sempre fez em outros escritos. Não
o conseguiu neste, mesmo sendo
uma leitura fácil, didática em excesso e organizada em 49 curtos
capítulos (seguindo o estilo evangélico tradicional).
O didatismo e as gracinhas despontam em inúmeras passagens.
Na página 55, por exemplo, Jesus,
ao mencionar o mar da Galiléia,
diz "que é somente um lago, mas
tão grande quanto um mar".
Na página 65, surpreso com sua
capacidade de curar, o Nazareno
diz que "bastava colocar a mão
sobre suas cabeças para expulsar
os pequenos diabinhos (sic)".
Em debate com os escribas no interior de uma sinagoga (pág. 71),
depois de curar um paralítico, Jesus é por eles questionado sobre
como ousava querer perdoar pecados. Resposta humorística do narrador: "Por que procurar razões?
O sujeito chegou aqui paralítico e,
logo depois, saiu carregando a cama nas costas; talvez tenha mancado um pouco, mas apenas por um
momento".
Mais gracinhas? Na página 185,
admirado com a agilidade mental
de Pilatos e, após descrevê-lo como baixo, nariz pontudo e ombros
pronunciados, conclui: "De fato,
os narigudos costumam ser inteligentes".
Na página 202, quando Jesus volta, já ressurgido, e Tomé duvida
ser Ele mesmo (pedindo para tocar
as chagas), observa: "Eis porque é
conhecido, até hoje, como Tomé
sem fé".
Para quem se dispuser a ler todo
o livro (esquecendo-se, por respeito estético, ser ele um trabalho de
Mailer), vale a pena deleitar-se
com alguns trechos lúdicos.
A página 54, quando nas bodas
de Caná, Jesus transforma água em
vinho e leva uma carraspana de
um anjo por ficar gastando milagres à toa ("Assim como um barril
transbordante de mel pode ser esvaziado, o Filho tolo desperdiça
seu estoque de milagres").
A página 57, na qual Deus dá aulas de retórica a seu Filho ("Trata
de frisar um ponto, qualquer um...
Sublinha tua fala com um bordão
-'Assim diz o Senhor', por exemplo").
A página 183, quando Judas Iscariotes dá lições de política partidária e imperial a Jesus, desnudando
as articulações entre Pilatos, Herodes e o Sinédrio, ressaltando as
alianças escusas existentes e afirmando que poderia abandonar o
Mestre se fosse estrategicamente
necessário. Há mais, muito mais.
Mailer tinha, evidentemente, o
direito de escrever o livro. No entanto, poderia ter aberto mão dessa garantia constitucional.
Livro: O Evangelho Segundo o Filho
Autor: Norman Mailer
Lançamento: Record
Quanto: R$ 20 (208 págs.)
Mario Sergio Cortella, 43, professor-doutor do
departamento de Teologia e Ciências da Religião
da PUC-SP, é o apresentador e um dos
mediadores dos "Diálogos Impertinentes"; foi
secretário municipal de Educação de São Paulo
(gestão Luiza Erundina)
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