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Autor ganha biografia no Brasil e em Portugal simultaneamente
DA REPORTAGEM LOCAL
A relação da socióloga portuguesa Maria Filomena Mónica
com Eça de Queirós começou
com uma interdição. Quando era
criança, seus pais a proibiram de
ler as obras do escritor português,
que ficavam nas prateleiras superiores das estantes de sua casa.
Quando tinha 14 anos, ela resolveu fuçar nos volumes proibidos e
achou "O Crime do Padre Amaro", o primeiro romance de Eça.
Nunca mais largou.
No próximo mês, Mónica vai
tornar público o seu "affaire" com
o escritor. Ela lança simultaneamente no Brasil (pela editora Record) e em Portugal a esperada
biografia "Eça de Queiroz: Vida e
Obra" (título não definitivo).
Na entrevista a seguir, feita por
e-mail, a socióloga adianta para a
Folha alguns aspectos de seu livro
e faz previsões sobre a adaptação
para a televisão de "Os Maias",
que ela descreve sucintamente como "a tragédia de alguém que, um
dia, se apaixonou por uma deusa
linda, esbelta e inacessível (a irmã
que ele desconhecia ter) e que a
teve de deixar, como de deixar teve os sonhos de reforma que acalentara para o seu país".
(CASSIANO ELEK MACHADO)
Folha - Quais são, na opinião da
sra., as teses que vão causar mais
polêmica em seu livro sobre Eça de
Queirós?
Maria Filomena Mónica - Duas,
em particular. Existe uma tese
bem disseminada entre especialistas em Eça de que o fato de ele
desconhecer quem são seus pais
teria lhe causado traumas profundos. Na ausência de qualquer evidência empírica -uma carta, um
indício, uma confissão-, o que o
biógrafo honesto deve fazer, no
que diz respeito a essas consequências psicológicas da ilegitimidade de Eça, é ser omisso.
Na realidade, ninguém sabe se
Eça sofreu ou não com isso. Dado
que parte dos papéis pessoais de
Eça desapareceu no naufrágio do
navio que, após a sua morte,
transportava os seus bens, há aspectos da sua personalidade que
para sempre serão misteriosos.
Importa ainda dizer que, à época, a taxa de ilegitimidade era, em
todas as classes, muito elevada, o
que nunca foi tido em conta por
quem escreveu sobre Eça.
A segunda tese diz respeito à sua
suposta vontade de regressar a
Portugal. Ao contrário do que diz
a maior parte dos estudiosos, Eça
não queria regressar ao seu país.
A idéia de que Eça passou os últimos dias da sua vida a suspirar
pelo retorno à pátria é um mito
divulgado pelo Estado Novo
(1934-1974) e que permaneceu.
De fato, o deslumbramento de
Eça diante de Paris desaparecera.
Mas isso não o fazia desejar Lisboa. Muito menos as serras. A cidade era o seu elemento, e o estrangeiro, o seu refúgio.
Folha - O escritor e jornalista Carlos Heitor Cony escreveu recentemente em sua coluna na Folha que,
"como qualquer outro romancista,
Eça nada inventou". O que a sra. diria dessa afirmação? Eça deve mesmo ser tratado como realista?
Mónica - Depois de olhar atentamente o real, Eça inventou tudo.
A "sua" Leiria é uma criação literária, não é uma fotografia. O
mesmo se pode dizer dos ambientes, das personagens e do enredo.
O que eu defendo no meu livro é
que, ao contrário do que por vezes
sucede, não se podem usar os romances de Eça como fontes históricas. Quem quiser estudar Portugal em 1870 tem de ler, para além
dos romances de Eça, outras fontes. Eça era um romancista, não
um antropólogo. Nas suas análises, nomeadamente as que versam sobre a decadência do país,
Eça errou. Entre meados de 1870 e
meados de 1880, quando, em "Os
Maias", ele considera o país "parado", este vivia um dos seus períodos mais dinâmicos.
Folha - Qual o papel que a sra. vê
de "Os Maias" na obra de Eça?
Mónica - "Os Maias" é o testamento pessoal de Eça. Embora
ainda vivesse 12 anos depois de ter
publicado essa obra, sabia que lhe
seria difícil voltar a escrever algo
tão genial. Talvez por isso, embora continuasse a escrever, tivesse
desistido de publicar.
Folha - Quais a sra. acredita serem as dificuldades de adaptação
de "Os Maias" para a televisão?
Mónica - São as mesmas de toda
adaptação de romances. O realizador que adaptar "Os Maias" terá de ser tão bom a filmar quanto
Eça a escrever.
Folha - De que modo a sra. trata
em seu livro da "ecite" brasileira,
da influência que o escritor teve no
Brasil? Por que a sra. acredita que o
viajante Eça nunca veio ao Brasil?
Mónica - Suponho que Eça teve o
sucesso no Brasil pelas mesmas
razões que o teve em Portugal:
por ter sido o nosso primeiro escritor moderno. Uma das razões
que poderá ter contribuído para
que Eça nunca tivesse ido ao Brasil é a de que ele sempre se sentiu
fundamentalmente um europeu.
Curiosamente, se não tivesse
havido uma interferência pessoal
junto do ministro dos Negócios
Estrangeiros, no sentido de colocar um "protegido" seu no Brasil,
o primeiro posto diplomático de
Eça teria sido não Cuba, mas o
Recife.
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