São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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CRÍTICA

O futuro da TV que não houve

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

Por que parou? Parou, por quê? Vendo a TV Rá-Tim-Bum, cuja programação constitui-se, basicamente, do acervo de programas infantis da TV Cultura dos anos 80 e 90, essa pergunta fica no ar. É um pouco retórica, a pergunta -há, aqui e ali, programas mais recentes, estréias-, mas serve: se a TV Cultura conseguiu chegar àquele nível de qualidade em sua programação infantil, por que parou?
Com exceção do (ótimo) "Cocoricó", ainda em produção, repete-se na TV Rá-Tim-Bum aquilo que se tornou uma espécie de estigma da TV Cultura: muita reprise e repetição.
E é uma pena, porque a impressão que dá é que, na TV Cultura, se jogou fora ou se deixou dispersar um núcleo de pensamento (e execução) de programas infantis (e infanto-juvenis e juvenis) que talvez seja difícil reunir novamente.
Havia ali, nesse conjunto de roteiristas, diretores, atores, animadores, músicos, um know-how consistente para lidar com educação e diversão simultaneamente, uma concepção de entretenimento que não precisava de artifícios para ser atraente e, até, um conjunto de valores defendidos com firmeza mas também com leveza e humor, que fizeram esse momento da TV brasileira ser realmente especial.
Não é fácil -a Xuxa que o diga- fazer programa de criança a sério, com respeito, sem ser pesado, maçante e excessivamente escolar. Talvez a única maneira seja acreditar, de fato, que o conhecimento, em sua concepção mais ampla possível, é uma forma de se relacionar com o mundo -e que isso pode ser divertido. Que a curiosidade, a imaginação, o raciocínio são ferramentas que podem ser usadas com prazer -e não só porque são a coisa certa e adequada. E que, nesse campo, as crianças, se deixadas em paz e se forem ouvidas, sabem mais do que os adultos.
"Rá-Tim-Bum", "O Castelo Rá-Tim-Bum", "Catavento", "X-Tudo", entre outros, eram programas assim, em que os adultos envolvidos pareciam ter parte com o olhar infantil para as coisas -desassombrado, aberto, inquiridor etc. O diabo - aqui, de novo, não se pode deixar de pensar na Xuxa e na sua enorme dificuldade de fazer um programa "do bem"- é que não se falsifica, não se compra na esquina, não se adquire por decreto essa possibilidade de se colocar à altura das crianças.
É um sintoma bem grave que esse acúmulo de experiências e de conquistas concretas tenha se tornado, em grande medida, "material de arquivo". A etiologia desse caso específico é complicada -tem politicagem, desmantelamento do Estado, nova ordem mundial etc. etc. no meio-, mas a doença é aquela mesma de sempre: a (quase) incapacidade de dar continuidade às coisas que já deram certo, a tentação de fazer política de terra arrasada.
E, assim, assistir à TV Rá-Tim-Bum é quase como uma expedição arqueológica a um futuro da TV que não houve.


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