São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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TV

Diretor associa "Hoje É Dia de Maria" a uma busca pela identidade brasileira

Carvalho invoca a cultura popular em microssérie


"É uma mensagem de esperança, de luta pela nossa identidade, nossa memória, de não nos sentirmos tão apequenados frente a outras culturas"


VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Em poucos minutos de conversa, o diretor Luiz Fernando Carvalho relaciona uma microssérie para a TV com suas percepções estéticas e ideológicas no audiovisual contemporâneo. "A mais nova atração pode ser um vale a pena ver de novo desgraçado", diz.
"Hoje É Dia de Maria" estréia na terça-feira, na Globo, sob a assinatura do carioca Carvalho, 43, o mesmo da novela "O Rei do Gado", da série "Os Maias" e do filme "Lavoura Arcaica".
O diretor associa a longa jornada da menina Maria (protagonista que sofre maus-tratos e foge de casa) à busca da identidade, da memória que o Brasil também deveria empreender se colocasse a cultura popular, sua ancestralidade, em relevo. "Toda travessia promove esse processo de individuação. Maria atravessa esse mundo de aventuras como todos os heróis, como em todos os mitos, como Ulysses [de Joyce] enfrentando suas guerras", diz.
"Hoje É Dia de Maria" é embrião de uma fábula curta que o dramaturgo Carlos Alberto Soffredini (1939-2001) escreveu no final dos anos 80, quando trabalhavam juntos na emissora.
Carvalho recebeu a Folha durante intervalo para almoço nas gravações, em novembro. A seguir, trechos da entrevista.
 

Folha - A microssérie é uma afirmação da cultura popular?
Luiz Fernando Carvalho -
Aqui tem uma afirmação do inconsciente brasileiro, do subterrâneo brasileiro. Com a liberdade de não ser regionalista. Uma tentativa feita com muita delicadeza, porque o fio que está conduzindo tudo isso é o fio da infância, o fio da memória. E, se o artista estiver sob o espírito da coragem, este sim, capaz de impulsioná-lo na direção certa dos mais sinceros conteúdos, essas lembranças de infância e outras imagens que vimos e vivemos com o frescor de uma primeira vez vencerão a batalha diária contra as máscaras fáceis do modelo que nos é imposto.

Folha - A série parece-me também um ato de fé de sua parte...
Carvalho -
... Ou, se preferir, um processo de individuação. Toda travessia promove esse processo de individuação. Maria atravessa esse mundo de aventuras como todos os heróis, como em todos os mitos, como Ulysses enfrentando suas guerras... E Maria enfrenta suas guerras, seus demônios, suas seduções. Assim, atravessando um território chamado País do Sol a Pino, infernal, ela se constitui. Nesse sentido, é uma mensagem de esperança, de luta pela nossa identidade e memória, de não nos sentirmos tão apequenados frente a outras culturas.

Folha - Como surgiu a série?
Carvalho -
Há uns 15 anos, tive a oportunidade de ler pela primeira vez os contos retirados da oralidade popular brasileira, recolhidos não só pelo Câmara Cascudo mas Silvio Romero, entre outros. Fiquei impressionado com as características de pequenos mitos. Convidei o Soffredini para estruturar dramaticamente. Era uma pequena aproximação, um guia, que poderia ser tanto para televisão quanto para cinema. Primeiramente, pensei na televisão que, com sua abrangência, seria a única capaz de devolver ao povo suas fábulas encenadas. É como se um ciclo se fechasse com mais perfeição.

Folha - E a decisão de retomar a matriz deixada por Soffredini?
Carvalho -
Naquela época, sugeri que reestruturássemos a narrativa a partir de um personagem recorrente, feminino, que era a Maria. Nos contos é praticamente a personagem principal, aquela que nos revela a história. Quando, neste ano, surgiu a proposta da microssérie, a Renata, filha do Soffredini, me sugeriu o [Luís Alberto de] Abreu como um dramaturgo que dialogava com a linguagem do seu pai. Ela acertou em cheio, Abreu teve uma imediata compreensão de tudo.

Folha - Você ajudou no texto, tem vocação para a escrita?
Carvalho -
Eu tenho um certo exercício solitário da escrita que agora revelei um pouco com a ajuda do Abreu, mas a responsabilidade do texto, evidentemente, é muito mais dele e do Soffredini. E, pelo fato de a estrutura narrativa ser muito oral, os personagens se estruturam ao dialogar, estão se contando quando dialogam; ou seja, atuam como narradores.

Folha - O procedimento na preparação das gravações, as semanas com o elenco treinando corpo, voz, enfim, tudo isso é uma constante? Dentro da emissora, há mais receptividade para isso?
Carvalho -
É uma preocupação de tempos. Fui preparando-me, amadurecendo para realizar esse tipo de treinamento criativo com todo o grupo. Sempre senti falta de estar criando junto com os atores, com a direção de arte... Como você vê aqui [espaço improvisado em terreno em frente ao Projac], um conglomerado de oficinas, de artistas plásticos, enfim, nosso cotidiano é composto de oficinas nas quais as pessoas saem de um barracão e entram em um outro, e esse fluxo sangüíneo que permeia, que eu preciso que permeie todos os departamentos, incluindo aí os atores que são também artistas. Ator burocrático, sinto muito, não tem vez aqui. Não estou querendo renovar nada, até muito pelo contrário. Isso é muito velho, cá entre nós.

Folha - Parece uma atitude quase quixotesca dentro do espaço da TV.
Carvalho -
No meu modo de sentir, e lembrando um pouco da televisão da minha infância, em geral as televisões perderam um pouco do espírito aventureiro, que é também o espírito do risco, e que foi também o espírito formador da própria televisão. Mas este não é um fenômeno que apenas recai sobre as televisões, mas também sobre toda a tal indústria que se convencionou chamar de "bens culturais". Aquele que permanecer sentado em cima de sua coroa egocêntrica, saboreando um status engessado, satisfeito demais com os resultados e aparências, pode, de uma hora para a outra, se perceber banguela. O que aos olhos destes parece novo, pode se tornar muito velho. A mais nova atração pode ser um vale a pena ver de novo desgraçado...

Folha - E quando fará teatro?
Carvalho -
Já fui convidado algumas vezes, mas, assim como o cinema é uma linguagem da qual me sinto próximo, o teatro ainda é um lugar distante e que eu respeito de longe.

Folha - Ouvi um comentário seu na gravação, de que quem guia a câmera é o ator, e ela não deve "andar solta", tem que colar no ator.
Carvalho -
Os personagens são narradores. E, como a história tem que ser narrada de dentro para fora, se a câmara mexe sozinha, o processo já é mais formalista, e portanto não nos deve interessar. Então, é o personagem que estipula a posição da câmera, é o estado de espírito dele que determina se ela vai mexer ou não. Vem dele, de dentro do seu discurso, de uma sintaxe, de seu centro para fora, e não ao contrário.


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