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TV
Diretor associa "Hoje É Dia de Maria" a uma busca pela identidade brasileira
Carvalho invoca a cultura popular em microssérie
"É uma mensagem de esperança, de luta pela nossa identidade, nossa memória, de não nos sentirmos tão apequenados frente a outras culturas"
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VALMIR SANTOS
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Em poucos minutos de conversa, o diretor Luiz Fernando Carvalho relaciona uma microssérie
para a TV com suas percepções
estéticas e ideológicas no audiovisual contemporâneo. "A mais nova atração pode ser um vale a pena ver de novo desgraçado", diz.
"Hoje É Dia de Maria" estréia na
terça-feira, na Globo, sob a assinatura do carioca Carvalho, 43, o
mesmo da novela "O Rei do Gado", da série "Os Maias" e do filme "Lavoura Arcaica".
O diretor associa a longa jornada da menina Maria (protagonista que sofre maus-tratos e foge de
casa) à busca da identidade, da
memória que o Brasil também deveria empreender se colocasse a
cultura popular, sua ancestralidade, em relevo. "Toda travessia
promove esse processo de individuação. Maria atravessa esse
mundo de aventuras como todos
os heróis, como em todos os mitos, como Ulysses [de Joyce] enfrentando suas guerras", diz.
"Hoje É Dia de Maria" é embrião de uma fábula curta que o
dramaturgo Carlos Alberto Soffredini (1939-2001) escreveu no final dos anos 80, quando trabalhavam juntos na emissora.
Carvalho recebeu a Folha durante intervalo para almoço nas
gravações, em novembro. A seguir, trechos da entrevista.
Folha - A microssérie é uma afirmação da cultura popular?
Luiz Fernando Carvalho - Aqui
tem uma afirmação do inconsciente brasileiro, do subterrâneo
brasileiro. Com a liberdade de
não ser regionalista. Uma tentativa feita com muita delicadeza,
porque o fio que
está conduzindo
tudo isso é o fio da
infância, o fio da
memória. E, se o
artista estiver sob
o espírito da coragem, este sim, capaz de impulsioná-lo na direção
certa dos mais sinceros conteúdos,
essas lembranças
de infância e outras imagens que
vimos e vivemos
com o frescor de
uma primeira vez
vencerão a batalha diária contra
as máscaras fáceis
do modelo que
nos é imposto.
Folha - A série parece-me também um ato de fé de sua parte...
Carvalho - ... Ou, se preferir, um
processo de individuação. Toda
travessia promove esse processo
de individuação. Maria atravessa
esse mundo de aventuras como
todos os heróis, como em todos
os mitos, como Ulysses enfrentando suas guerras... E Maria enfrenta suas guerras, seus demônios, suas seduções. Assim, atravessando um território chamado
País do Sol a Pino, infernal, ela se
constitui. Nesse sentido, é uma
mensagem de esperança, de luta
pela nossa identidade e memória,
de não nos sentirmos tão apequenados frente a outras culturas.
Folha - Como surgiu a série?
Carvalho - Há uns 15 anos, tive a
oportunidade de ler pela primeira
vez os contos retirados da oralidade popular brasileira, recolhidos
não só pelo Câmara Cascudo mas
Silvio Romero, entre outros. Fiquei impressionado com as características de pequenos mitos.
Convidei o Soffredini para estruturar dramaticamente. Era uma
pequena aproximação, um guia,
que poderia ser tanto para televisão quanto para cinema. Primeiramente, pensei na televisão que,
com sua abrangência, seria a única capaz de devolver ao povo suas
fábulas encenadas. É como se um
ciclo se fechasse com mais perfeição.
Folha - E a decisão de retomar a
matriz deixada por Soffredini?
Carvalho - Naquela época, sugeri
que reestruturássemos a narrativa a partir de um personagem recorrente, feminino, que era a Maria. Nos contos é praticamente a
personagem principal, aquela que
nos revela a história. Quando,
neste ano, surgiu a proposta da
microssérie, a Renata, filha do
Soffredini, me sugeriu o [Luís Alberto de] Abreu como um dramaturgo que dialogava com a linguagem do seu pai. Ela acertou em
cheio, Abreu teve uma imediata
compreensão de tudo.
Folha - Você ajudou no texto, tem
vocação para a escrita?
Carvalho - Eu tenho um certo
exercício solitário
da escrita que
agora revelei um
pouco com a ajuda do Abreu, mas
a responsabilidade do texto, evidentemente, é
muito mais dele e
do Soffredini. E,
pelo fato de a estrutura narrativa
ser muito oral, os
personagens se
estruturam ao
dialogar, estão se
contando quando
dialogam; ou seja,
atuam como narradores.
Folha - O procedimento na preparação das gravações, as semanas com o elenco treinando corpo, voz, enfim, tudo isso
é uma constante? Dentro da emissora, há mais receptividade para isso?
Carvalho - É uma preocupação
de tempos. Fui preparando-me,
amadurecendo para realizar esse
tipo de treinamento criativo com
todo o grupo. Sempre senti falta
de estar criando junto com os atores, com a direção de arte... Como
você vê aqui [espaço improvisado
em terreno em frente ao Projac],
um conglomerado de oficinas, de
artistas plásticos, enfim, nosso cotidiano é composto de oficinas
nas quais as pessoas saem de um
barracão e entram em um outro, e
esse fluxo sangüíneo que permeia, que eu preciso que permeie
todos os departamentos, incluindo aí os atores que são também
artistas. Ator burocrático, sinto
muito, não tem vez aqui. Não estou querendo renovar nada, até
muito pelo contrário. Isso é muito
velho, cá entre nós.
Folha - Parece uma atitude quase
quixotesca dentro do espaço da TV.
Carvalho - No meu modo de sentir, e lembrando um pouco da televisão da minha infância, em geral as televisões perderam um
pouco do espírito aventureiro,
que é também o espírito do risco,
e que foi também o espírito formador da própria televisão. Mas
este não é um fenômeno que apenas recai sobre as televisões, mas
também sobre toda a tal indústria
que se convencionou chamar de
"bens culturais". Aquele que permanecer sentado em cima de sua
coroa egocêntrica, saboreando
um status engessado, satisfeito
demais com os resultados e aparências, pode, de uma hora para a
outra, se perceber banguela. O
que aos olhos destes parece novo,
pode se tornar muito velho. A
mais nova atração pode ser um
vale a pena ver de novo desgraçado...
Folha - E quando fará teatro?
Carvalho - Já fui convidado algumas vezes, mas, assim como o cinema é uma linguagem da qual
me sinto próximo, o teatro ainda
é um lugar distante e que eu respeito de longe.
Folha - Ouvi um comentário seu
na gravação, de que quem guia a
câmera é o ator, e ela não deve "andar solta", tem que colar no ator.
Carvalho - Os personagens são
narradores. E, como a história
tem que ser narrada de dentro para fora, se a câmara mexe sozinha,
o processo já é mais formalista, e
portanto não nos deve interessar.
Então, é o personagem que estipula a posição da câmera, é o estado de espírito dele que determina
se ela vai mexer ou não. Vem dele,
de dentro do seu discurso, de uma
sintaxe, de seu centro para fora, e
não ao contrário.
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