São Paulo, domingo, 09 de janeiro de 2005

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FERREIRA GULLAR

Catastrofismos

Como fui criado, por assim dizer, na natureza, nunca tive por ela a veneração que têm os ecologistas. Próximo de minha casa, em torno do Campo do Ourique, havia diversas quintas por onde me embrenhava caçando trauíras e pegando passarinho em alçapão. Já um pouco maior, ia bem mais longe, até a Prainha, pescar barrigudos e "arrastar" camarão. Aliás, São Luís inteira era uma grande quinta, com sua luz azul e grossa, com seus quintais povoados de árvores frutíferas e passarinhos.
Devo admitir que, já adulto, rompida essa relação inocente com a natureza, comecei a ter certo medo dela, melhor dizendo de seu silêncio e impenetrável mistério. No mundo urbano, me sinto mais à vontade, talvez por não ser ele como a natureza, que nos parece chamar para si, para que nela nos dissolvamos de novo. Por isso, quando, certa vez, me convidaram para fazer uma palestra sobre ecologia, comecei dizendo o seguinte: "Quem inventou a cidade foi o índio...".
O leitor deve estar se perguntando com que propósito escrevo estas coisas. É que, na semana passada, vi um programa sobre o cosmos e fiquei arrasado. Mas chego lá... Antes quero falar da primeira revista de ecologia que li, faz muitos anos. Via com simpatia o movimento ecológico e o Partido Verde alemão, mas nunca tinha me dado ao trabalho de ler textos sobre ecologia. Por isso abri a revista cheio de curiosidade, e eis que uma visão assustadora tomou conta de mim: a floresta amazônica, que era o pulmão do mundo, estava prestes a ser destruída; os mananciais de água potável estavam já em grande parte poluídos; as metrópoles envenenadas pelos veículos movidos a petróleo, que aquecia o planeta e em breve provocaria o derretimento das calotas polares, o que levaria à inundação das cidades próximas aos oceanos; isto sem falar no buraco de ozônio que crescia sem parar e nos ameaçava a todos com câncer de pele... Pus a revista de lado e fiquei ali sem ânimo para continuar vivendo.
Mas reagi: peguei a revista, joguei-a no lixo e, quando chegou o novo número, igualmente apocalíptico, dei-lhe o mesmo destino. Isso não significa que eu seja contra o movimento ecológico. Pelo contrário, creio que a defesa da vida no planeta é uma tarefa de todos nós, tanto que me revoltei com a notícia de que o presidente Bush se havia negado a assinar o Protocolo de Kyoto.
Estou convencido de que só com a crescente mobilização da opinião pública mundial os governos assumirão a responsabilidade que lhes cabe em questão de tamanha relevância. O que não se pode é perder a medida e pôr as pessoas em pânico, como se já estivesse tudo perdido. O que move as pessoas é a esperança na sua solução dos problemas.
Além do mais, se é verdade que o conhecimento que temos da natureza deve nos guiar para melhor lidarmos com ela, é aconselhável ter cautela em lugar de agir em nome de certezas inquestionáveis. Por exemplo, o buraco de ozônio que estaria se ampliando sobre a Austrália em razão do excesso de gás utilizado em nossas aparentemente inofensivas geladeiras. Pois bem, eu, que não entendo de ozônio nem tampouco desejo que as pessoas morram de câncer, surpreendi-me, alguns anos atrás, com as conseqüências de um vulcão que entrou em erupção no Pacífico: a informação dos entendidos era que os milhões toneladas de gazes que ele lançava na atmosfera ampliariam de maneira fantástica o tal buraco. A surpresa maior foi quando li nos jornais, pouco tempo depois, que o buraco estava diminuindo. Resmunguei: não será que a natureza entende mais de si mesma do que nós?
Outro fato que me chamou a atenção foi um horrendo incêndio que destruiu muitos quilômetros de uma reserva florestal na Califórnia. E não é que poucos anos depois estava lá a floresta verde de novo, povoada de castores e pássaros? Devemos concluir que está errado lutar pela preservação da natureza? Claro que não. Esta luta não apenas é certa como imprescindível.
Mas eis que o movimento das placas tectônicas no fundo do oceano Índico, indiferentes à proximidade dos festejos de fim de ano, movem-se alguns centímetros e, com isso, provocam ondas gigantescas que destruíram cidades e mataram quase 200 mil pessoas em poucos minutos.
Bem, aí a coisa muda de figura, pois não há campanha ecológica nem providência humana de nenhum tipo capaz de controlar a força imprevisível e colossal da natureza. Ao ver o papa, logo depois, pedindo ajuda para os atingidos pela hecatombe, resmunguei: "Devia era ter pedido a Deus que não fizesse isto". Mas logo me corrigi: foi exatamente por causa desse desamparo que o homem inventou Deus.
Disse acima que o que me levou a escrever esta crônica foi um programa de televisão sobre o cosmos que, como aquela revista ecológica, deixou-me arrasado: os cientistas que nele se manifestaram garantiam que a qualquer momento a Terra será destruída por um asteróide vindo do espaço. Pequenos asteróides caem a toda hora no nosso planeta, mas é quase certo que a qualquer momento um desses, de 50 km de comprimento ou mais, pesando milhões de toneladas e voando a uma velocidade fantástica, pode acabar com tudo. Isso sem falar nos buracos negros que, segundo eles, quando menos se esperar, começarão a sugar o nosso Sol.
Desliguei a televisão e fui dormir sem saber se, antes de acordar, já não teria me tornado poeira cósmica. A partir de hoje, em nome de minha felicidade pessoal, não verei mais programas sobre esse assunto. Prefiro ser surpreendido pela catástrofe do que sofrê-la por antecipação.


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