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FERREIRA GULLAR
Catastrofismos
Como fui criado, por assim
dizer, na natureza, nunca tive por ela a veneração que têm os
ecologistas. Próximo de minha
casa, em torno do Campo do Ourique, havia diversas quintas por
onde me embrenhava caçando
trauíras e pegando passarinho
em alçapão. Já um pouco maior,
ia bem mais longe, até a Prainha,
pescar barrigudos e "arrastar" camarão. Aliás, São Luís inteira era
uma grande quinta, com sua luz
azul e grossa, com seus quintais
povoados de árvores frutíferas e
passarinhos.
Devo admitir que, já adulto,
rompida essa relação inocente
com a natureza, comecei a ter certo medo dela, melhor dizendo de
seu silêncio e impenetrável mistério. No mundo urbano, me sinto
mais à vontade, talvez por não ser
ele como a natureza, que nos parece chamar para si, para que nela nos dissolvamos de novo. Por
isso, quando, certa vez, me convidaram para fazer uma palestra
sobre ecologia, comecei dizendo o
seguinte: "Quem inventou a cidade foi o índio...".
O leitor deve estar se perguntando com que propósito escrevo
estas coisas. É que, na semana
passada, vi um programa sobre o
cosmos e fiquei arrasado. Mas
chego lá... Antes quero falar da
primeira revista de ecologia que
li, faz muitos anos. Via com simpatia o movimento ecológico e o
Partido Verde alemão, mas nunca tinha me dado ao trabalho de
ler textos sobre ecologia. Por isso
abri a revista cheio de curiosidade, e eis que uma visão assustadora tomou conta de mim: a floresta
amazônica, que era o pulmão do
mundo, estava prestes a ser destruída; os mananciais de água
potável estavam já em grande
parte poluídos; as metrópoles envenenadas pelos veículos movidos
a petróleo, que aquecia o planeta
e em breve provocaria o derretimento das calotas polares, o que
levaria à inundação das cidades
próximas aos oceanos; isto sem
falar no buraco de ozônio que
crescia sem parar e nos ameaçava
a todos com câncer de pele... Pus a
revista de lado e fiquei ali sem
ânimo para continuar vivendo.
Mas reagi: peguei a revista, joguei-a no lixo e, quando chegou o
novo número, igualmente apocalíptico, dei-lhe o mesmo destino.
Isso não significa que eu seja contra o movimento ecológico. Pelo
contrário, creio que a defesa da
vida no planeta é uma tarefa de
todos nós, tanto que me revoltei
com a notícia de que o presidente
Bush se havia negado a assinar o
Protocolo de Kyoto.
Estou convencido de que só com
a crescente mobilização da opinião pública mundial os governos
assumirão a responsabilidade
que lhes cabe em questão de tamanha relevância. O que não se
pode é perder a medida e pôr as
pessoas em pânico, como se já estivesse tudo perdido. O que move
as pessoas é a esperança na sua
solução dos problemas.
Além do mais, se é verdade que
o conhecimento que temos da natureza deve nos guiar para melhor lidarmos com ela, é aconselhável ter cautela em lugar de agir
em nome de certezas inquestionáveis. Por exemplo, o buraco de
ozônio que estaria se ampliando
sobre a Austrália em razão do excesso de gás utilizado em nossas
aparentemente inofensivas geladeiras. Pois bem, eu, que não entendo de ozônio nem tampouco
desejo que as pessoas morram de
câncer, surpreendi-me, alguns
anos atrás, com as conseqüências
de um vulcão que entrou em
erupção no Pacífico: a informação dos entendidos era que os milhões toneladas de gazes que ele
lançava na atmosfera ampliariam de maneira fantástica o tal
buraco. A surpresa maior foi
quando li nos jornais, pouco tempo depois, que o buraco estava diminuindo. Resmunguei: não será
que a natureza entende mais de si
mesma do que nós?
Outro fato que me chamou a
atenção foi um horrendo incêndio que destruiu muitos quilômetros de uma reserva florestal na
Califórnia. E não é que poucos
anos depois estava lá a floresta
verde de novo, povoada de castores e pássaros? Devemos concluir
que está errado lutar pela preservação da natureza? Claro que
não. Esta luta não apenas é certa
como imprescindível.
Mas eis que o movimento das
placas tectônicas no fundo do
oceano Índico, indiferentes à proximidade dos festejos de fim de
ano, movem-se alguns centímetros e, com isso, provocam ondas
gigantescas que destruíram cidades e mataram quase 200 mil pessoas em poucos minutos.
Bem, aí a coisa muda de figura,
pois não há campanha ecológica
nem providência humana de nenhum tipo capaz de controlar a
força imprevisível e colossal da
natureza. Ao ver o papa, logo depois, pedindo ajuda para os atingidos pela hecatombe, resmunguei: "Devia era ter pedido a Deus
que não fizesse isto". Mas logo me
corrigi: foi exatamente por causa
desse desamparo que o homem
inventou Deus.
Disse acima que o que me levou
a escrever esta crônica foi um programa de televisão sobre o cosmos
que, como aquela revista ecológica, deixou-me arrasado: os cientistas que nele se manifestaram
garantiam que a qualquer momento a Terra será destruída por
um asteróide vindo do espaço. Pequenos asteróides caem a toda
hora no nosso planeta, mas é quase certo que a qualquer momento
um desses, de 50 km de comprimento ou mais, pesando milhões
de toneladas e voando a uma velocidade fantástica, pode acabar
com tudo. Isso sem falar nos buracos negros que, segundo eles,
quando menos se esperar, começarão a sugar o nosso Sol.
Desliguei a televisão e fui dormir sem saber se, antes de acordar, já não teria me tornado poeira cósmica. A partir de hoje, em
nome de minha felicidade pessoal, não verei mais programas
sobre esse assunto. Prefiro ser surpreendido pela catástrofe do que
sofrê-la por antecipação.
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