São Paulo, sábado, 09 de janeiro de 2010

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RODAPÉ LITERÁRIO

O sol e o rés do chão


Ensaios de "As Ilhas", de Jean Grenier, equilibram hedonismo solar e inquietação metafísica


MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

A PUBLICAÇÃO de "As Ilhas", de Jean Grenier, nos 50 anos da morte de Albert Camus (num acidente de carro, em 4 de janeiro) é um ato editorial de justiça poética. Seria difícil imaginar os ensaios narrativos de "O Avesso e o Direto" ou os retratos ensaísticos que Camus fez de sua Argélia natal, em "Núpcias", sem esse livro de gênero indefinido, a meio caminho entre ficção e reflexão -e igualmente impregnado pela paisagem mediterrânea.
Grenier (1898-1971) nasceu em Paris, cresceu na Bretanha (noroeste da França) e lecionou na Universidade de Argel nos anos 30, quando publicou "As Ilhas" (1933) e teve Camus como aluno. No prefácio que escreveu à reedição de 1959 (incluído na edição brasileira), Camus diz que o livro significou para sua geração uma iniciação no desencanto -mas um desencanto paradoxal, que reafirmava a volúpia pelos "frutos da terra" (para mencionar o livro de André Gide que serviu de bússola para o hedonismo pessimista de Grenier e Camus).
Nos textos de "As Ilhas", portadores de uma filosofia ao rés do chão, pequenas cenas semelhantes a um diário (passeios por cidades europeias, a contemplação de um gato, a conversa com um açougueiro moribundo) desencadeiam reflexões sobre "o pouco de realidade das coisas", a sensação de "vacuidade", enfim, lugares-comuns da inquietação metafísica.
E seriam de fato tímidos clichês, se comparados aos monumentos da filosofia existencial da época (Heidegger, Sartre), não fosse sua escrita arrebatadora, que consegue extrair de vivências elementares uma forma de meditação lírica.
"Transformar minhas intuições em sistema -um sistema bastante flexível para não esgotar estas intuições". Tal é o projeto de Grenier, e por aí se define um gênero específico de apreensão da realidade: o ensaio, na acepção original de Montaigne, naquilo que apresenta de atenção à experiência particular e, portanto, de antidogmatismo, de aversão aos grandes sistemas que pretendem esgotar a totalidade do mundo.
Fato apontado e comungado por Camus, Grenier formula sua percepção da insuficiência humana a partir de uma ávida adesão à luz mediterrânea: "O sol o isola e o ser se encontra face a face com ele mesmo -sem nenhum ponto de apoio".
Esse despojamento não cancela as injustiças sociais, mas forja uma austeridade moral que previne tanto dos ressentimentos em relação à miséria quanto das promessas do Eldorado político: "Para que serve remexer a lama do planeta quando se permanece no centro das coisas?"
Grenier encontra uma de suas "ilhas" na Índia e na serena indiferença do bramanismo; seu arquipélago, porém, continua sendo essa noção mediterrânea de medida, de equilíbrio entre plenitude solar e história.


AS ILHAS

Autor: Jean Grenier
Tradução: Aimée Amaro de Lolio
Editora: Perspectiva
Quanto: R$ 38 (416 págs.)
Avaliação: ótimo




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