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Poderes de Alá
Naif Al-Mutawa, escritor do Kuait, cria super-heróis muçulmanos -entre eles, um brasileiro- baseados nas virtudes do Deus da religião islâmica
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL
Em uma época em que a mera
junção das palavras "cartum" e
"islamismo" é suficiente para insuflar ânimos, pode causar espanto a notícia de que está em desenvolvimento uma série de super-heróis de quadrinhos cujos poderes têm origem
em 99 atributos que os muçulmanos vêem em Alá, seu Deus.
Mas a idéia não veio de um jornal dinamarquês, como as charges do profeta Muhammad [fundador do islamismo] que causaram violentas reações entre religiosos. Ela surgiu da mente de um
muçulmano, o kuaitiano Naif Abdulrahman Al-Mutawa, 36, vencedor do Prêmio de Literatura Infantil da Unesco em 1997, ex-psicólogo que trabalhou com sobreviventes de tortura política.
Para criar "The 99", Al-Mutawa
misturou arquétipos do islamismo e da cultura árabe com as fórmulas -e os visuais- característicos das HQs norte-americanas.
A história (disponível no site
www.theninetynine.com) fala de
99 pedras sagradas (elas conferem
superpoderes aos que as possuírem) que se espalharam pelo
mundo após a invasão de Bagdá
pelos mongóis, em 1258.
Em entrevista à Folha, Al-Mutawa explica a origem dos heróis
-um dos quais será brasileiro-,
afirma não temer reações de religiosos e considera que a discussão
sobre os cartuns de Muhammad
foi uma "discussão entre dois grupos fundamentalistas".
Folha - Como surgiu a idéia de
criar personagens de quadrinhos
baseados no islamismo?
Naif Al-Mutawa - Escrevi livros
infantis entre 1996 e 1999, mas fiquei frustrado com a censura que
eles sofriam em determinados
países e, por isso, fiquei sem escrever por cinco anos. Mas, em
2003, eu estava em Londres com
minha irmã, que é ilustradora, e
ela me cobrou sobre um projeto
que eu tinha de voltar a escrever.
Foi aí que pensei em criar heróis
de quadrinhos para o mundo islâmico, seres poderosos baseados
em 99 atributos de Alá.
Folha - Eles têm os mesmos poderes de Alá?
Al-Mutawa - Cada um dos heróis
terá um dos atributos de Alá, mas,
obviamente, não no mesmo nível.
Por exemplo, Alá
é "As-Samee'", "o
que tudo ouve", e
temos uma personagem que é apenas Sami", com
uma audição superior à dos humanos, mas não
como a de Alá. E
os desafios das
histórias nunca
serão vencidos
por um único personagem, como
acontece com o
Super-Homem
ou o Batman. Cada problema precisará de três diferentes heróis para ser resolvido.
Folha - Quem é seu público-alvo?
Al-Mutawa - Queremos atingir
todo o mundo. Cada um dos 99
heróis será de um país e eles serão
divididos quase meio a meio entre
homens e mulheres. Teremos um
herói brasileiro e um argentino,
por exemplo, porque isso mostra
o aspecto multicultural da diáspora árabe. Vamos lançar edições
em árabe para o Oriente Médio,
mas também em inglês, e esperamos negociar com parceiros internacionais para publicar nas línguas locais.
Folha - E qual é o atributo do brasileiro?
Al-Mutawa -Ainda não o desenvolvemos. Já temos dez heróis, de
países como os Emirados Árabes,
França e Portugal, mas ainda não
chegamos ao brasileiro.
Folha - O senhor não teme reações negativas por parte dos muçulmanos?
Al-Mutawa -É claro que sempre
vai haver alguns intolerantes, isso
não é uma coisa específica do Islã,
está presente em todas as religiões. De qualquer modo, as histórias em quadrinhos não falarão
de religião -não menciono Alá
diretamente nem o Alcorão [livro
sagrado dos muçulmanos] ou Muhammad, apenas
uso os arquétipos
islâmicos. Ou seja,
as histórias são baseadas na tradição
islâmica, mas não
são religiosas.
Folha - E qual sua
opinião sobre as
charges sobre Muhammad publicadas
na Europa?
Al-Mutawa -O que
eu vi até agora foi
uma discussão entre dois grupos fundamentalistas:
o da liberdade de imprensa e o
dos extremistas muçulmanos. A
imprensa européia, defendendo
seu direito divino de publicar o
que quer que seja, diz que é assim
que as coisas são e que os religiosos é que têm de mudar de opinião. Qual é a diferença entre a intransigência dessa posição e a dos
fundamentalistas muçulmanos?
Os dois grupos acham que estão
certos. Acho que a publicação dos
cartuns foi desrespeitosa e que a
reação dos muçulmanos, queimando embaixadas, também foi.
No fim, a principal vítima foi o
governo dinamarquês. Sei, pela
minha experiência de trabalho,
que a Dinamarca sempre foi um
dos maiores apoiadores dos direitos humanos contra a tortura.
Quando trabalhei no Kuait após a
Guerra do Golfo, foi o governo dinamarquês que enviou psicólogos para nos ajudar a construir
uma unidade de tratamento para
as vítimas de tortura. O governo
da Dinamarca acabou recebendo
a ira por causa da ação de outros.
Folha - Há pouco foi anunciada a
criação de uma companhia [Virgin
Comics] que está desenvolvendo
HQs com heróis baseados na cultura indiana. Agora, o senhor surge
com seus heróis árabes. O que impulsiona essas forças regionais?
Al-Mutawa - Coincidentemente,
eu e Sharad [Devarajan, indiano
que é o CEO da Virgin Comics]
freqüentamos a mesma universidade [Columbia Business School,
nos EUA]. A Índia já tem, há tempos, uma indústria, Bollywood
[de filmes], para exportar sua cultura; era só uma questão de tempo até chegarem aos quadrinhos.
O que me motivou foi o desafio de
encarar a globalização exportando nossa cultura, em vez de apenas reclamar da importação da
cultura ocidental. Há uma grande
oportunidade de negócio aí, porque existe um mercado muçulmano que ainda não foi atingido.
E o cenário final da globalização
será uma mistura das culturas.
Eu fiz também um acordo para
distribuir os quadrinhos da Marvel e alguns da DC no Oriente Médio, escritos em árabe, e, no futuro, dar aos heróis origens árabes,
como os indianos já fizeram com
o Homem-Aranha Índia [HQ em
que o personagem ganha origem
e traços indianos]. Falei para os
executivos da Marvel que, apesar
do mercado árabe não ser do
mesmo tamanho que o indiano, a
aranha já está no Islã, porque ela
salvou a vida do profeta durante a
Hijrah [a fuga de Muhammad de
Meca para Medina].
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