São Paulo, quinta-feira, 09 de fevereiro de 2006

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Poderes de Alá

Naif Al-Mutawa, escritor do Kuait, cria super-heróis muçulmanos -entre eles, um brasileiro- baseados nas virtudes do Deus da religião islâmica

MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em uma época em que a mera junção das palavras "cartum" e "islamismo" é suficiente para insuflar ânimos, pode causar espanto a notícia de que está em desenvolvimento uma série de super-heróis de quadrinhos cujos poderes têm origem em 99 atributos que os muçulmanos vêem em Alá, seu Deus.
Mas a idéia não veio de um jornal dinamarquês, como as charges do profeta Muhammad [fundador do islamismo] que causaram violentas reações entre religiosos. Ela surgiu da mente de um muçulmano, o kuaitiano Naif Abdulrahman Al-Mutawa, 36, vencedor do Prêmio de Literatura Infantil da Unesco em 1997, ex-psicólogo que trabalhou com sobreviventes de tortura política.
Para criar "The 99", Al-Mutawa misturou arquétipos do islamismo e da cultura árabe com as fórmulas -e os visuais- característicos das HQs norte-americanas. A história (disponível no site www.theninetynine.com) fala de 99 pedras sagradas (elas conferem superpoderes aos que as possuírem) que se espalharam pelo mundo após a invasão de Bagdá pelos mongóis, em 1258.
Em entrevista à Folha, Al-Mutawa explica a origem dos heróis -um dos quais será brasileiro-, afirma não temer reações de religiosos e considera que a discussão sobre os cartuns de Muhammad foi uma "discussão entre dois grupos fundamentalistas".
 

Folha - Como surgiu a idéia de criar personagens de quadrinhos baseados no islamismo?
Naif Al-Mutawa -
Escrevi livros infantis entre 1996 e 1999, mas fiquei frustrado com a censura que eles sofriam em determinados países e, por isso, fiquei sem escrever por cinco anos. Mas, em 2003, eu estava em Londres com minha irmã, que é ilustradora, e ela me cobrou sobre um projeto que eu tinha de voltar a escrever. Foi aí que pensei em criar heróis de quadrinhos para o mundo islâmico, seres poderosos baseados em 99 atributos de Alá.

Folha - Eles têm os mesmos poderes de Alá?
Al-Mutawa -
Cada um dos heróis terá um dos atributos de Alá, mas, obviamente, não no mesmo nível. Por exemplo, Alá é "As-Samee'", "o que tudo ouve", e temos uma personagem que é apenas Sami", com uma audição superior à dos humanos, mas não como a de Alá. E os desafios das histórias nunca serão vencidos por um único personagem, como acontece com o Super-Homem ou o Batman. Cada problema precisará de três diferentes heróis para ser resolvido.

Folha - Quem é seu público-alvo?
Al-Mutawa -
Queremos atingir todo o mundo. Cada um dos 99 heróis será de um país e eles serão divididos quase meio a meio entre homens e mulheres. Teremos um herói brasileiro e um argentino, por exemplo, porque isso mostra o aspecto multicultural da diáspora árabe. Vamos lançar edições em árabe para o Oriente Médio, mas também em inglês, e esperamos negociar com parceiros internacionais para publicar nas línguas locais.

Folha - E qual é o atributo do brasileiro?
Al-Mutawa -
Ainda não o desenvolvemos. Já temos dez heróis, de países como os Emirados Árabes, França e Portugal, mas ainda não chegamos ao brasileiro.

Folha - O senhor não teme reações negativas por parte dos muçulmanos?
Al-Mutawa -
É claro que sempre vai haver alguns intolerantes, isso não é uma coisa específica do Islã, está presente em todas as religiões. De qualquer modo, as histórias em quadrinhos não falarão de religião -não menciono Alá diretamente nem o Alcorão [livro sagrado dos muçulmanos] ou Muhammad, apenas uso os arquétipos islâmicos. Ou seja, as histórias são baseadas na tradição islâmica, mas não são religiosas.

Folha - E qual sua opinião sobre as charges sobre Muhammad publicadas na Europa?
Al-Mutawa -
O que eu vi até agora foi uma discussão entre dois grupos fundamentalistas: o da liberdade de imprensa e o dos extremistas muçulmanos. A imprensa européia, defendendo seu direito divino de publicar o que quer que seja, diz que é assim que as coisas são e que os religiosos é que têm de mudar de opinião. Qual é a diferença entre a intransigência dessa posição e a dos fundamentalistas muçulmanos? Os dois grupos acham que estão certos. Acho que a publicação dos cartuns foi desrespeitosa e que a reação dos muçulmanos, queimando embaixadas, também foi.
No fim, a principal vítima foi o governo dinamarquês. Sei, pela minha experiência de trabalho, que a Dinamarca sempre foi um dos maiores apoiadores dos direitos humanos contra a tortura. Quando trabalhei no Kuait após a Guerra do Golfo, foi o governo dinamarquês que enviou psicólogos para nos ajudar a construir uma unidade de tratamento para as vítimas de tortura. O governo da Dinamarca acabou recebendo a ira por causa da ação de outros.

Folha - Há pouco foi anunciada a criação de uma companhia [Virgin Comics] que está desenvolvendo HQs com heróis baseados na cultura indiana. Agora, o senhor surge com seus heróis árabes. O que impulsiona essas forças regionais?
Al-Mutawa -
Coincidentemente, eu e Sharad [Devarajan, indiano que é o CEO da Virgin Comics] freqüentamos a mesma universidade [Columbia Business School, nos EUA]. A Índia já tem, há tempos, uma indústria, Bollywood [de filmes], para exportar sua cultura; era só uma questão de tempo até chegarem aos quadrinhos. O que me motivou foi o desafio de encarar a globalização exportando nossa cultura, em vez de apenas reclamar da importação da cultura ocidental. Há uma grande oportunidade de negócio aí, porque existe um mercado muçulmano que ainda não foi atingido. E o cenário final da globalização será uma mistura das culturas.
Eu fiz também um acordo para distribuir os quadrinhos da Marvel e alguns da DC no Oriente Médio, escritos em árabe, e, no futuro, dar aos heróis origens árabes, como os indianos já fizeram com o Homem-Aranha Índia [HQ em que o personagem ganha origem e traços indianos]. Falei para os executivos da Marvel que, apesar do mercado árabe não ser do mesmo tamanho que o indiano, a aranha já está no Islã, porque ela salvou a vida do profeta durante a Hijrah [a fuga de Muhammad de Meca para Medina].


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