|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Dois tipos de vergonha (moralidade 2)
A última coluna terminou
assim: "Como funciona (ou
não funciona) a vergonha numa
sociedade moderna, como a nossa?". Começo a responder.
Dois tipos de vergonha organizam coletividades diferentes:
uma vergonha, digamos, antiga,
que vale para as sociedades tradicionais (como o Japão de Ruth
Benedict, que mencionei na semana passada) e uma vergonha
moderna, que vale para nós.
A vergonha antiga não é apenas
uma longínqua realidade histórica ou antropológica. Todos podemos conhecer por experiência, em
nossa vida, ambas as vergonhas.
Caracterizá-las porque correspondem a sociedades distintas é
só uma maneira simples de explicá-las.
A vergonha antiga é dominante
nas sociedades tradicionais, em
que existem códigos de honra ou
normas de conduta para cada
grupo e casta da coletividade. O
sujeito dessas sociedades é (e se
sente) definido pelo grupo ou pela
casta aos quais ele pertence: quem
desrespeita os códigos não cumpre com os requisitos de sua própria identidade. Ele se envergonha porque seu ato compromete a
significação de sua existência,
quebra a integridade de seu ser.
Por exemplo, um nobre do século 12, saqueando uma aldeia a caminho de Jerusalém, podia estuprar mocinhas sem sentir vergonha alguma. Por mais que já houvesse, na época, alguém para reprovar seus atos, estuprar mocinhas numa cruzada não era um
comportamento que sacudisse os
alicerces de sua identidade. No
entanto, se ele faltasse à palavra
dada, mesmo que ninguém soubesse disso e pudesse reprová-lo,
ele, provavelmente, desmoronaria de cima de seu cavalo, traidor
de sua casta e de seus ascendentes. Essa seria sua vergonha.
A modernidade acabou com os
códigos de honra e as normas de
conduta para cada casta, porque
suprimiu as castas. Com isso, nasceu, ou melhor, tornou-se dominante um novo tipo de vergonha.
Para explicar a mudança, recorro ao clássico de Norbert Elias,
"O Processo Civilizador". Elias
mostra que a modernidade transformou os tratados de boas maneiras. Até o século 15 ou 16, os
tratados explicavam o que os homens da corte deviam fazer para
pertencerem à corte (esse era,
aliás, o sentido da "cortesia"
-ser cortês significava pertencer
à corte). A partir do século 15, os
tratados começam a salientar que
as boas maneiras não são apenas
os hábitos de uma casta de cortesões, elas servem para que os outros olhem para a gente com simpatia.
No passado, alguém não assoprava o nariz na manga do vizinho porque isso não condizia com
sua identidade (de cortesão, no
caso). Hoje, agimos da mesma
forma, mas para que o vizinho
nos considere com carinho, visto
que poupamos sua manga.
Em outras palavras, os códigos
de honra e as normas de conduta
são substituídos, na modernidade, pelo olhar e pela consideração
dos outros. Quando agimos errado, a vergonha não nasce do receio de perdermos nossa identidade, mas da previsão de que seremos malvistos, reprovados. O
drama de quem vai para a lista
negra do SPC não é que ele compromete sua identidade de comerciante ou consumidor, mas
que ele "suja seu nome na praça".
Trata-se de experiências psicológicas distintas.
A vergonha antiga é o sentimento de uma dívida simbólica
que não foi paga: desrespeitamos
nossa herança ou as leis de nossa
estirpe, casta ou família, traímos
o que nos definia. A vergonha
moderna é o sentimento de uma
perda de amor: os outros não gostarão mais de nós.
A vergonha antiga é a sensação
de uma indignidade interna: não
estamos à altura de quem somos.
A vergonha moderna é externa: o
que nos envergonha é a rejeição, o
desamparo que nos assolará
quando ninguém mais nos amará.
A vergonha antiga se preocupa
com nossa identidade, a vergonha moderna se preocupa com
nossa reputação.
Cuidado, nenhuma "leviandade" nessa mudança. Nosso lugar
na sociedade não é mais decidido
pelo berço, não é um destino; por
isso mesmo, ele só pode depender
da opinião que os outros têm de
nós (e, portanto, de nossa capacidade de sermos aceitos e amados
por eles).
Conseqüência: na modernidade, as razões de vergonha não
correspondem a um código fixo,
elas variam ao longo do tempo,
seguindo as mudanças dos hábitos e dos costumes, ou seja, da
maneira de pensar da coletividade que nos aprova ou reprova.
Um único grande princípio, fixo
e inaugural (que tentarei explicar
na próxima coluna), afirma-se
apesar da variação dos costumes:
em matéria de amor, paixões e
desejos eróticos, para nós, não há
vergonha. Ou melhor, só há uma
vergonha possível (parecida,
aliás, com a vergonha antiga): a
vergonha de não assumir e não
viver o desejo da gente.
O maravilhoso filme de Ang Lee
em cartaz nestes dias, "O Segredo
de Brokeback Mountain", é um
exemplo perfeito. Seu sucesso
(merecido) prova que, desde o começo dos anos 60 (época dos fatos
narrados), os costumes mudaram. Além disso, um "detalhe"
chama a atenção: em nenhum
momento os protagonistas sentem vergonha por seu amor e desejo homossexuais. Eles se escondem para proteger-se do preconceito local, mas nunca se envergonham. Nisso eles são heróis modernos.
@ - ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Cinema: Berlinale abre hoje com estrelas do Oscar e jovens Índice
|