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ANTONIO CICERO
Marx e o capitalismo
Mesmo que cada um pense e aja de maneira diferente dos outros, o capitalismo prospera
MARX CONTA, em nota de pé
de página de "O Capital",
que, certa vez, uma gazeta
teuto-americana criticou o materialismo da sua famosa tese, segundo a
qual a estrutura econômica da sociedade é a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e
política, à qual correspondem determinadas formas de consciência social. Para os editores da gazeta, tudo
isso certamente estava correto para
o mundo contemporâneo, onde dominava o interesse material, mas
não para a Idade Média, em que dominava o catolicismo, nem para Atenas ou Roma, onde dominava a política. A resposta de Marx foi que "a
Idade Média não podia viver do catolicismo, nem o mundo antigo, da
política. Ao contrário, a forma e o
modo pelos quais ganhavam a vida é
que explica por que ali a política e
aqui o catolicismo desempenhavam
o papel principal".
Ninguém ignora a importância do
catolicismo para o feudalismo, que
era o modo de produção dominante
na Idade Média. Como diz o historiador Jacques Le Goff, em "O Deus
da Idade Média" (ed. Civilização
Brasileira), publicado no Brasil no
ano passado, "no mundo feudal, nada de importante se passa sem que
seja relacionado a Deus. Deus é ao
mesmo tempo o ponto mais alto e o
fiador desse sistema. É o senhor dos
senhores. [...] O regime feudal e a
Igreja eram de tal forma ligados que
não era possível destruir um sem
pelo menos abalar o outro".
Como se sabe, o regime feudal era
o modo de produção dominante na
Europa, antes do capitalismo. Curiosamente, se pensarmos agora no
modo de produção que pretendia
superar o capitalismo, que era o socialismo (que, segundo os marxistas-leninistas, era a primeira etapa,
de transição, para o comunismo),
veremos que, onde ele tentou existir
realmente, como na União Soviética, nos países do Leste Europeu etc.,
o papel da ideologia marxista-leninista não era menor do que o da religião católica havia sido durante a era
do feudalismo.
É verdade que, no socialismo, a
política também teve um papel importantíssimo, não menor do que o
que tivera no mundo antigo; mas, de
qualquer modo, a história mostrou
que aquilo que Le Goff diz da articulação entre o feudalismo e a Igreja
-que eram de tal forma ligados que
não seria possível destruir um sem
pelo menos abalar o outro- pode
ser dito da articulação entre o socialismo real e o partido marxista-leninista. Assim, por exemplo, dado que,
no socialismo, as atividades econômicas não seriam mais realizadas
tendo em vista a subsistência ou o
lucro, era necessário que o partido
-como diz uma enciclopédia publicada pelo Instituto Bibliográfico da
extinta República Democrática Alemã- orientasse a criação da "unidade moral e política do povo", de modo que o trabalho se transformasse,
"de mero meio de subsistência a um
assunto de honra".
Em semelhante regime, a intolerância em relação a heresias -ideologias alternativas, "desvios", "revisionismos" etc.- não é meramente
acidental. A repressão a elas não se
reduz -como se poderia supor- a
um mero estratagema político, usado por determinado partido ou comitê central, ou líder (como não
pensar em Stalin?) para racionalizar
a prática de perseguir e eliminar os
dissidentes. Ela provém da necessidade estrutural de manter a unidade
ideológica indispensável para o funcionamento da própria base econômica.
Já o capitalismo funciona independentemente das idéias, concepções, religiões, atitudes, isto é, das
ideologias, dos operários, capitalistas, técnicos, administradores ou
consumidores que o fazem funcionar. Ainda que cada indivíduo pense
e aja de uma maneira diferente de
todos os outros, o capitalismo é capaz de prosperar, desde que seja observado de modo geral um mínimo
de leis e regras formais de convivência. É exatamente por isso que ele é
compatível com a maximização da
liberdade individual, a sociedade
aberta e o reformismo.
Os editores da gazeta teuto-americana perceberam de modo invertido a situação real. É o feudalismo (e,
como vimos, também o socialismo)
que necessita, para o seu funcionamento, de uma ideologia particular,
correspondente à sua base econômica, e que, por isso, não é capaz de
tolerar ideologias alternativas. O capitalismo, porém, exatamente porque a sua base econômica opera a
partir do puro interesse material, independentemente de qualquer
ideologia particular, não necessita
de nenhuma ideologia específica, de
modo que é capaz de tolerar todas,
inclusive as que lhe foram ou são
hostis, como o catolicismo ou o marxismo-leninismo.
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