São Paulo, sábado, 09 de março de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"TEMPOS MUITO ESTRANHOS"

Obra sobrevive às acusações sofridas

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O lançamento da edição brasileira do excelente "Tempos Muito Estranhos" veio envolto em nuvem de incidentes infelizes. Primeiro, a acusação de plágio contra sua autora, Doris Kearns Goodwin, por uma outra biografia, anterior, "The Fitzgeralds and Kennedys", que ela foi forçada a reconhecer e que lhe provocou inúmeros constrangimentos. Depois, o fato de Jader Barbalho ter usado uma cópia do livro para ocultar as algemas que prendiam suas mãos ao ser detido pela Polícia Federal.
A edição sofre de outros problemas, menos anedóticos e mais sérios. Um deles, infelizmente, é corriqueiro no caso de traduções para o português de trabalhos históricos ou biográficos. As editoras brasileiras não costumam oferecer ao seu leitor o benefício de notas de rodapé que o ajudem a penetrar em contextos de referência que fazem parte do universo do público a que são originalmente destinados. Com isso, perde-se muito da compreensão dos fatos descritos pelo autor.
Dificuldade mais específica deste livro é a tradução em si, que em diversos trechos peca pela literalidade. Com frequência, tem-se a impressão de estar lendo um texto em inglês que teve suas palavras vertidas uma a uma para o português. A edição também erra com padronizações equivocadas (por exemplo, não usa letra maiúscula para designar diversos substantivos próprios como nomes de partidos políticos, órgãos de governo -mesmo o Congresso dos EUA-, períodos históricos como a Depressão) e por ignorar o significado de expressões que só fazem sentido nos EUA ("a dramática ida de Roosevelt à colina" não faz sentido, a não ser que o leitor saiba que The Hill é uma forma comum de designar o Congresso americano). A editora Nova Fronteira não teve ainda o cuidado de publicar as fotos, que tão bem ilustram a edição original, da Simon & Schuster.
Outras restrições que podem ser feitas ao livro resultam do próprio original. Goodwin, que é uma das mais respeitadas historiadoras americanas mesmo depois da divulgação do plágio -sua atitude foi muito mais digna e elogiada do que a de outros colegas pegos recentemente em situações similares-, sofre de um mal comum do jornalismo e da historiografia do final do século 20 naquele país: a liberdade com que autores descrevem cenas e palavras de personagens sem o respaldo de nenhuma fonte.
Goodwin não diz de onde tirou informações e reconstruiu diálogos de cenas íntimas vividas na ala residencial da Casa Branca durante a Segunda Guerra, cenário e época em que se concentra a maior parte do trabalho, que tem como principais objetivos descrever e analisar o papel histórico do casal Franklin e Eleanor Roosevelt durante aquele conflito.
Esses óbices, no entanto, são insuficientes para ofuscar a qualidade do livro de Goodwin, que mereceu o Pulitzer de 1995. Por meio de constantes mudanças do foco narrativo entre vida particular do casal Roosevelt (e seus coadjuvantes) e ambiente político-militar do período, ela consegue construir uma história em que os personagens representam valores que estavam em choque na sociedade americana da época.
Eleanor Roosevelt e Winston Churchill emergem como as duas maiores influências sobre o presidente. A primeira-dama representava a modernidade; o primeiro-ministro britânico era a voz do conservadorismo. Roosevelt balançava entre os dois.
Goodwin, com os instrumentos da ficção que podem enfraquecer a credibilidade histórica do relato, mas sem dúvida beneficiam o clima de interesse em torno do assunto de que trata, constrói uma trama com aspectos de romance. Quando a história do livro começa, o casal Roosevelt já estava emocionalmente separado (o rompimento se deu em 1918, quando ela descobriu que o marido tinha um caso com uma de suas funcionárias). Em torno do presidente, gravitavam várias mulheres com quem ele se envolveu. A primeira-dama, pelo que se depreende do texto, parecia concentrar todas as suas energias no trabalho político de fazer avançar suas causas progressistas no governo do marido.
O futuro, como a história provaria, estava ao lado de Eleanor Roosevelt, que, como seu adversário Churchill, viveu o suficiente para constatá-lo. O presidente morreu antes de ver a guerra mundial terminada, embora já estivesse clara a vitória dos aliados.
"Tempos Muito Estranhos" oferece ao leitor a oportunidade de compreender como a história se desenrola nos bastidores, como emoções humanas interferem na sua construção, como figuras públicas admiradas podem se comportar na intimidade de modo muito diverso, quase antagônico de seu discurso político. Eleanor Roosevelt, campeã das causas da solidariedade humana, mostrava virtual indiferença às necessidades de pessoas muito próximas em sua vida; Franklin Roosevelt, um dos salvadores da democracia, agia como um absoluto egocêntrico; talvez Churchill tenha sido o mais consistente do triângulo, um tradicionalista convicto tanto nas idéias políticas quanto nas relações pessoais.


Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor de Redação do jornal "Valor Econômico"

Tempos Muito Estranhos
No Ordinary Times
   
Autora: Doris Kearns Goodwin
Tradutor: Joubert de Oliveira Brizida
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 49 (652 págs.)




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