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LIVROS/LANÇAMENTOS
"TEMPOS MUITO ESTRANHOS"
Obra sobrevive às acusações sofridas
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O lançamento da edição
brasileira do excelente
"Tempos Muito Estranhos" veio
envolto em nuvem de incidentes
infelizes. Primeiro, a acusação de
plágio contra sua autora, Doris
Kearns Goodwin, por uma outra
biografia, anterior, "The Fitzgeralds and Kennedys", que ela foi
forçada a reconhecer e que lhe
provocou inúmeros constrangimentos. Depois, o fato de Jader
Barbalho ter usado uma cópia do
livro para ocultar as algemas que
prendiam suas mãos ao ser detido
pela Polícia Federal.
A edição sofre de outros problemas, menos anedóticos e mais sérios. Um deles, infelizmente, é
corriqueiro no caso de traduções
para o português de trabalhos históricos ou biográficos. As editoras
brasileiras não costumam oferecer ao seu leitor o benefício de notas de rodapé que o ajudem a penetrar em contextos de referência
que fazem parte do universo do
público a que são originalmente
destinados. Com isso, perde-se
muito da compreensão dos fatos
descritos pelo autor.
Dificuldade mais específica deste livro é a tradução em si, que em
diversos trechos peca pela literalidade. Com frequência, tem-se a
impressão de estar lendo um texto em inglês que teve suas palavras vertidas uma a uma para o
português. A edição também erra
com padronizações equivocadas
(por exemplo, não usa letra
maiúscula para designar diversos
substantivos próprios como nomes de partidos políticos, órgãos
de governo -mesmo o Congresso dos EUA-, períodos históricos como a Depressão) e por ignorar o significado de expressões
que só fazem sentido nos EUA ("a
dramática ida de Roosevelt à colina" não faz sentido, a não ser que
o leitor saiba que The Hill é uma
forma comum de designar o Congresso americano). A editora Nova Fronteira não teve ainda o cuidado de publicar as fotos, que tão
bem ilustram a edição original, da
Simon & Schuster.
Outras restrições que podem
ser feitas ao livro resultam do próprio original. Goodwin, que é
uma das mais respeitadas historiadoras americanas mesmo depois da divulgação do plágio
-sua atitude foi muito mais digna e elogiada do que a de outros
colegas pegos recentemente em
situações similares-, sofre de
um mal comum do jornalismo e
da historiografia do final do século 20 naquele país: a liberdade
com que autores descrevem cenas
e palavras de personagens sem o
respaldo de nenhuma fonte.
Goodwin não diz de onde tirou
informações e reconstruiu diálogos de cenas íntimas vividas na
ala residencial da Casa Branca durante a Segunda Guerra, cenário e
época em que se concentra a
maior parte do trabalho, que tem
como principais objetivos descrever e analisar o papel histórico do
casal Franklin e Eleanor Roosevelt durante aquele conflito.
Esses óbices, no entanto, são insuficientes para ofuscar a qualidade do livro de Goodwin, que mereceu o Pulitzer de 1995. Por meio
de constantes mudanças do foco
narrativo entre vida particular do
casal Roosevelt (e seus coadjuvantes) e ambiente político-militar do período, ela consegue construir uma história em que os personagens representam valores
que estavam em choque na sociedade americana da época.
Eleanor Roosevelt e Winston
Churchill emergem como as duas
maiores influências sobre o presidente. A primeira-dama representava a modernidade; o primeiro-ministro britânico era a voz do
conservadorismo. Roosevelt balançava entre os dois.
Goodwin, com os instrumentos
da ficção que podem enfraquecer
a credibilidade histórica do relato,
mas sem dúvida beneficiam o clima de interesse em torno do assunto de que trata, constrói uma
trama com aspectos de romance.
Quando a história do livro começa, o casal Roosevelt já estava
emocionalmente separado (o
rompimento se deu em 1918,
quando ela descobriu que o marido tinha um caso com uma de
suas funcionárias). Em torno do
presidente, gravitavam várias
mulheres com quem ele se envolveu. A primeira-dama, pelo que
se depreende do texto, parecia
concentrar todas as suas energias
no trabalho político de fazer avançar suas causas progressistas no
governo do marido.
O futuro, como a história provaria, estava ao lado de Eleanor
Roosevelt, que, como seu adversário Churchill, viveu o suficiente
para constatá-lo. O presidente
morreu antes de ver a guerra
mundial terminada, embora já estivesse clara a vitória dos aliados.
"Tempos Muito Estranhos" oferece ao leitor a oportunidade de
compreender como a história se
desenrola nos bastidores, como
emoções humanas interferem na
sua construção, como figuras públicas admiradas podem se comportar na intimidade de modo
muito diverso, quase antagônico
de seu discurso político. Eleanor
Roosevelt, campeã das causas da
solidariedade humana, mostrava
virtual indiferença às necessidades de pessoas muito próximas
em sua vida; Franklin Roosevelt,
um dos salvadores da democracia, agia como um absoluto egocêntrico; talvez Churchill tenha sido o mais consistente do triângulo, um tradicionalista convicto
tanto nas idéias políticas quanto
nas relações pessoais.
Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor
de Redação do jornal "Valor Econômico"
Tempos Muito Estranhos
No Ordinary Times
Autora: Doris Kearns Goodwin
Tradutor: Joubert de Oliveira Brizida
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 49 (652 págs.)
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