São Paulo, sábado, 09 de março de 2002

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"MANA MARIA"

Alcântara Machado olha de dentro

CRÍTICO DA FOLHA

O nó do enredo de "Mana Maria", romance de Antônio de Alcântara Machado, se dá por meio de uma proposta de casamento. Sendo o matrimônio um dos assuntos principais do livro, vale analisar o tratamento que o escritor paulistano confere nessa sua única ficção longa lançada agora, pela primeira vez, em edição autônoma.
O proponente é o dr. Samuel Pinto, jovem médico recém-chegado da Europa. É chamado à residência de Joaquim Pereira, cuja filha mais nova está com escarlatina. Manda abrir as janelas: é o "tratamento moderno". Volta à casa várias vezes. A moça sara. Ele cobra uma ninharia. Desconfiam.
O dr. Samuel deseja a filha mais velha de Joaquim, a mana Maria. Corteja-a. Empresta-lhe um romance em francês. Ela lê, detesta, rejeita o médico. O pai se desespera. Afinal, mana Maria é feia, dura, seca. Ninguém lhe fizera a corte antes. Ninguém o faria depois.
Depois recebem a notícia: dr. Samuel ganhara uma bolsa de estudos nos EUA. "Estava feito na vida", pensa Joaquim, "naturalmente o governo, assim que ele voltasse, o incumbiria da fundação de hospitais, ou nomearia diretor geral". Era um partidão.
Joaquim, com a ajuda dos tios da moça, trama um encontro entre o casal. Há um benefício oculto nesse entendimento. Joaquim é funcionário público, mas o tio Laerte, que "nunca soube o que era trabalho", está em dificuldades financeiras. O médico poderia futuramente amparar a empobrecida família quatrocentona.
O interesse se arma em sabermos se mana Maria vai ceder aos apelos do pai, ao estratagema dos tios, à vontade do galanteador. Podemos ver que há um deslocamento de perspectiva. Mana Maria, a protagonista, é uma anti-heroína. Veste-se de modo masculinizado. Não é bonita nem simpática. Não procura contemporizar. Não se deleita com o açucarado romance francês: "Acho banal", diz. Insinua-se que é "adepta das idéias modernas, do futurismo". Lê "livros comunistas" e não quer se casar. Tia Carlota se exaspera: "Mulher foi feita para casar".
Não julguemos mana Maria uma feminista "avant la lettre". Há muito de pudicícia em sua atitude. Ela se escandaliza quando um homem lhe afaga a perna, no cinema. Também há um desejo de vingança contra os moços que a desprezaram, pela desenxabidez, na adolescência.
Mana Maria representa um novo padrão de comportamento. Desejava trabalhar, ser professora. A mãe a proibiu, pois moças de sua classe só trabalhavam se "necessário". Voltou-se para o lar, comandando a economia da família como uma empresária implacável. Após a morte da mãe, passou a ditar normas. Fazia o que queria. E, com ela, ninguém podia.
Alcântara Machado ficou famoso pelos retratos dos imigrantes italianos de baixa e média extração de "Brás, Bexiga e Barra Funda". Embora não lhe negue o talento, a crítica costuma atentar para a condescendência do autor com os ítalo-brasileiros. Alfredo Bosi julga que há aí um "olhar de fora" e que "o sentimental ou o cômico fácil acabam por empanar uma visão mais profunda e dinâmica das relações humanas (...)"
Ainda que possamos discordar da posição de Bosi, é inegável que Alcântara Machado se sente mais à vontade descrevendo (e espicaçando) um setor da sociedade que conhece bem, por dele fazer parte: a alta burguesia paulista.
Podemos dizer que, em "Mana Maria", há um olhar de dentro, vivenciado, crítico. Com poucas palavras, o autor capta contradições intensas. E a atitude dos personagens deixa entrever subentendidos, inferências ocultas.
Um romance se faz com o que vai expresso e pelo que não vai, por aquilo que atrai múltiplos significados e se oferece a várias interpretações. "Mana Maria" representaria um "ponto de partida" na trajetória do autor, como diz a pesquisadora Cecilia de Lara, não fossem as circunstâncias. Alcântara Machado morreu aos 33 anos, antes de publicá-lo, deixando-nos órfãos de sua palavra.
(MARCELO PEN)


Mana Maria     
Autor: Antônio de Alcântara Machado
Editora: Nova Alexandria
Quanto: R$ 12 (104 págs.)




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