São Paulo, terça-feira, 09 de março de 2004

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Gênero desafia lemas do pop industrial

DO ENVIADO A NAZARÉ DA MATA

O maracatu de baque solto até parece, num primeiro golpe, uma forma primitiva e rudimentar de música. Conforme o freguês se embrenha no canavial, entretanto, surgem surpresas daquelas de dar aula de música e sabedoria à indústria fonográfica nacional.
O maracatu é rígido, rigoroso e dotado de todo um sistema de regras. A poética, apesar de ser em geral intuitiva e inculta, exige habilidade e elaboração.
Segundo relata Siba, a partir da chegada dos cantadores alfabetizados, houve uma hierarquização. O poeta que rima por oralidade -"cantador (cantadô)" e "sou (sô)", por exemplo- tem o "erro" cobrado pela comunidade.
O ineditismo também é exigido. O mestre de maracatu tem de ser autor dos versos que canta, e a cada apresentação é cobrado a oferecer novas composições. Também por isso Siba e Barachinha desprezam os temas de domínio público e compõem eles próprios todo o material de "No Baque Solto Somente".
Está aí o paradoxo, se se pensar na atual música popular de indústria. A sonoridade marcada do maracatu é que faz pensar em limitação e redundância, mas, se um artista de MPB viesse apresentar suas eternas releituras e reciclagens "ao vivo" num maracatu, seria vaiado no ato.
Embora se associe com ancestralidade, o baque solto reivindica também constante atualidade em suas crônicas musicais. Uma faixa do CD de Siba e Barachinha se chama "Clonagem" e satiriza o desejo de divindade do homem de ciência. Exala sabedoria popular que a indústria musical extirpou, por exemplo, do axé baiano.
Mas guarda em comum com o samba da Bahia certa tendência à agressividade dissimulada, que é elemento constitutivo dos enfrentamentos em sambadas.
Seguindo os ditos populares, chega a veicular preconceitos. Em diversas ocasiões, os xingamentos bem-humorados de parte a parte levam Siba a tratar Barachinha de "macaco". No duelo cordial de "Samba Curto", ele "xinga" o colega repetidas vezes de travesti, provocando risadas, mas também reiterando mansas agressões contra a classe marginalizada. Siba diz que é só brincadeira.
Em outro pólo, ele diverge da hierarquização que desvaloriza os poetas analfabetos. Veta versos "errados" em suas composições, mas dá livre expressão à oralidade dos cantores de seu coro.
Em "Maria, Minha Maria", do disco "Fuloresta do Samba", por exemplo, deixa a imaginação intuitiva de Biu Roque voar. Nos versos de domínio público "ô, que noite tão preciosa/ não deve dormir quem ama", Biu Roque escapa do coro e canta "espreciosa" em vez de "preciosa".
Misturando por intuição as qualidades de "especial" e "precioso", Biu Roque mostra que a fuga das regras se esconde dentro das próprias regras -e dá lição à indústria fonográfica que ele nem sequer conhece. (PAS)


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