São Paulo, quinta-feira, 09 de março de 2006

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NINA HORTA

O gosto que se discute

O que é o gosto? Coisa que me deixa muito intrigada no exercício da profissão de cozinheira.
Bem, no momento, estamos com dificuldade em conseguir alguém, no escritório da cozinha, que ao atender ao telefone saiba "sacar" o perfil de quem pede uma festa (pela voz, pelas palavras e pelo conteúdo delas) e, conseqüentemente, armar o seu menu, imaginar o que o cliente quer comer ou pensa que quer comer.
É complicado. Sou muito vaidosa neste quesito e proclamo aos quatro ventos que, mal o cliente abre a boca, já sei o que oferecer a ele. Nem sempre é verdade. Uma vez ficamos esperando por uma cliente numa bela biblioteca. Enquanto ela não chegava, fucei os livros todos, fiz um apanhado geral e brinquei: "O menu está arquipronto. Tradicional, com uma ou outra transgressão comportada, farto sem exageros, simples com graça..." e daí por diante. Logo depois chega a dona da casa, toda afobada com o atraso. Elogiei as estantes tão bem arrumadas, a encadernação perfeita, para ter como resposta: "Ah, os livros acabaram de chegar. Eram do meu sogro que morreu há pouco". Rasguei o menu do falecido.
Pois é isso. O telefone toca, atende a secretária que já começa a confundir as coisas. "Alô! Quem deseja?", o que já achamos levemente indiscreto. "Ela não se encontra", o que nos deixa no terreno das perdidas, sem rumo e sem norte. "De nada, imagina, bem, vou estar passando a ligação!", e gotas de suor já se acumulam nas nossas testas.
Pode ser que ao telefone não esteja a interessada direta na festa, e sim uma "eventora". (Note-se, palavra cunhada há dez anos mais ou menos para nomear aquela que faz "eventos", significando desde um café da manhã para dez como a posse do presidente.)
A eventora ou a maior parte delas tem um jargão próprio (diferente do nosso, de cozinheiras) que devemos desvendar sob pena de perder o cliente.
"Quero a cotação para um evento AA-Top-Top."
Meu santo, o que quer comer a turma AA-Top-Top?
"Um cardápio empratado, sofisticado e elaborado."
Aí é que a porca torce o rabo. Como foi que a eventora classificou o Top-Top? Por dinheiro, por posição social, por cultura? Por fome? É o gosto que vai classificar esse cliente em potencial, diferenciá-lo. Se não se classifica o cliente, podemos, com a palavra "estrogonofe", perdê-lo para sempre, e o mesmo pode acontecer com "trouxinhas de papoula".
O menu "sofisticado" corre por muitas vertentes. A preferência manifestada por quem quer dar a festa vai estabelecer muitas diferenças inevitáveis. Entre terrine de perdiz ou lombinho com farofa, vão fluir escolas, famílias, etnias, estilos de vida, músicas, flores, cada um seguindo o perfil do comedor. E temos minutos para descobrir, antes que a promotora desligue enfastiada, com a quantidade de perguntas.
Será o Top-Top um nostálgico de comidas de mãe? Um cliente que fica preso a todas as normas que imagina serem as dos nascidos em berço de ouro e não as transgride com medo de despencar do grupo privilegiado? (Normas que o grupo que dita as regras transgride sem parar, porque afinal, quem faz as regras é ele.)
A outra vertente é a dos diferentes. Não querem absolutamente nada que um dia já tenha sido feito. Soy contra. Não se identifica. Casam de short vermelho de veludo, o bolo é de chocolate preto, e a comida, vegetariana.
E como adivinhar que aquele outro sereno e tradicional cliente que passou anos construindo uma afinidade com os vinhos, com a gastronomia, com a pesca no Pantanal, com a equitação, enfiou as raízes na cultura brasileira, apropriou-se do vocabulário adequado, mas o que quer mesmo é se casar à grega, com o barulho de pratos se quebrando, ou a noiva linda levantada às alturas com música muito animada e arenque a mais não poder?
Perceberam as dificuldades, o drama, o clima? E tudo isso só nos primeiros minutos.
P.S.: Em tempo, acabamos de receber um pedido para um grupo MEGA SUPER PLUS VIP! Até a próxima.


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