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NINA HORTA
O gosto que se discute
O que é o gosto? Coisa que me
deixa muito intrigada no
exercício da profissão de cozinheira.
Bem, no momento, estamos
com dificuldade em conseguir alguém, no escritório da cozinha,
que ao atender ao telefone saiba
"sacar" o perfil de quem pede
uma festa (pela voz, pelas palavras
e pelo conteúdo delas) e, conseqüentemente, armar o seu menu,
imaginar o que o cliente quer comer ou pensa que quer comer.
É complicado. Sou muito vaidosa neste quesito e proclamo aos
quatro ventos que, mal o cliente
abre a boca, já sei o que oferecer a
ele. Nem sempre é verdade. Uma
vez ficamos esperando por uma
cliente numa bela biblioteca. Enquanto ela não chegava, fucei os
livros todos, fiz um apanhado geral e brinquei: "O menu está arquipronto. Tradicional, com uma
ou outra transgressão comportada, farto sem exageros, simples
com graça..." e daí por diante. Logo depois chega a dona da casa,
toda afobada com o atraso. Elogiei as estantes tão bem arrumadas, a encadernação perfeita, para
ter como resposta: "Ah, os livros
acabaram de chegar. Eram do
meu sogro que morreu há pouco". Rasguei o menu do falecido.
Pois é isso. O telefone toca, atende a secretária que já começa a
confundir as coisas. "Alô! Quem
deseja?", o que já achamos levemente indiscreto. "Ela não se encontra", o que nos deixa no terreno das perdidas, sem rumo e sem
norte. "De nada, imagina, bem,
vou estar passando a ligação!", e
gotas de suor já se acumulam nas
nossas testas.
Pode ser que ao telefone não esteja a interessada direta na festa, e
sim uma "eventora". (Note-se,
palavra cunhada há dez anos mais
ou menos para nomear aquela
que faz "eventos", significando
desde um café da manhã para dez
como a posse do presidente.)
A eventora ou a maior parte delas tem um jargão próprio (diferente do nosso, de cozinheiras)
que devemos desvendar sob pena
de perder o cliente.
"Quero a cotação para um evento AA-Top-Top."
Meu santo, o que quer comer a
turma AA-Top-Top?
"Um cardápio empratado, sofisticado e elaborado."
Aí é que a porca torce o rabo.
Como foi que a eventora classificou o Top-Top? Por dinheiro, por
posição social, por cultura? Por
fome? É o gosto que vai classificar
esse cliente em potencial, diferenciá-lo. Se não se classifica o cliente, podemos, com a palavra "estrogonofe", perdê-lo para sempre, e o mesmo pode acontecer
com "trouxinhas de papoula".
O menu "sofisticado" corre por
muitas vertentes. A preferência
manifestada por quem quer dar a
festa vai estabelecer muitas diferenças inevitáveis. Entre terrine
de perdiz ou lombinho com farofa, vão fluir escolas, famílias, etnias, estilos de vida, músicas, flores, cada um seguindo o perfil do
comedor. E temos minutos para
descobrir, antes que a promotora
desligue enfastiada, com a quantidade de perguntas.
Será o Top-Top um nostálgico
de comidas de mãe? Um cliente
que fica preso a todas as normas
que imagina serem as dos nascidos em berço de ouro e não as
transgride com medo de despencar do grupo privilegiado? (Normas que o grupo que dita as regras transgride sem parar, porque
afinal, quem faz as regras é ele.)
A outra vertente é a dos diferentes. Não querem absolutamente
nada que um dia já tenha sido feito. Soy contra. Não se identifica.
Casam de short vermelho de veludo, o bolo é de chocolate preto, e a
comida, vegetariana.
E como adivinhar que aquele
outro sereno e tradicional cliente
que passou anos construindo
uma afinidade com os vinhos,
com a gastronomia, com a pesca
no Pantanal, com a equitação, enfiou as raízes na cultura brasileira,
apropriou-se do vocabulário adequado, mas o que quer mesmo é
se casar à grega, com o barulho de
pratos se quebrando, ou a noiva
linda levantada às alturas com
música muito animada e arenque
a mais não poder?
Perceberam as dificuldades, o
drama, o clima? E tudo isso só nos
primeiros minutos.
P.S.: Em tempo, acabamos de
receber um pedido para um grupo MEGA SUPER PLUS VIP! Até
a próxima.
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