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CARLOS HEITOR CONY
Como nasceu o sinal que mudou a história
Dois carpinteiros, numa pequena oficina não muito
longe do Templo, estão aplainando duas peças de madeira. Uma
delas é maior do que a outra. A
encomenda fora feita por alguém
do palácio de Pilatos.
Os dois operários trabalham em
silêncio, com suas ferramentas: a
lâmina de ferro dentado para serrar, a lâmina polida para aplainar. Pouco depois, colocaram
uma das peças cruzando com a
outra.
Antes do meio-dia, virão buscar
aquele instrumento de tortura e
ignomínia, no qual deverá morrer um condenado de última hora. Na véspera, haviam entregue
duas encomendas iguais para que
nelas morressem dois ladrões, um
de Jerusalém, outro de Samaria.
O trabalho termina: a cruz está
pronta. Deixam-na do lado de fora, é um objeto que não será roubado por ninguém. Os judeus
nem sequer a tocariam, sabiam o
que ela significava. Somente os
soldados romanos, que desprezavam tudo o que os judeus produziam, viriam apanhá-la para com
ela se divertirem durante a execução do condenado.
Diziam que o haviam flagelado
durante a noite e o coroado com
espinhos. O próprio Pilatos o
apresentara assim, exangue e humilhado, dizendo: "Eis o homem!".
Os dois carpinteiros fecham a
oficina, um deles vai beber na nova taberna aberta no caminho
que leva a Jericó, o outro se dirige
para casa, pouco antes da porta
de Damasco.
Eles não sabem que acabaram
de criar o maior símbolo da história. Nem Fídias nem Michelangelo, ao esculpirem mármores imortais, jamais fizeram algo que se
aproximasse da grandeza e da
universalidade daqueles dois madeiros cruzados, expressão de
opróbrio então, que logo se tornariam símbolo de fé e de graça.
Erguida num morro próximo à
cidade, que desde os tempos de
Davi chamavam de Gólgota, e
que os romanos, supersticiosos,
chamavam de Calvário (parecia
um crânio sinistro e calvo), aquela cruz iniciaria sua trajetória
mansamente. Durante os três séculos seguintes, enfrentaria a cólera dos imperadores de Roma.
Venceria-os um a um. A simplicidade de seu "design" serviria de
inspiração ao gesto do crente que
se identificaria e, ao mesmo tempo, se propagaria.
Milhões de seres humanos morreriam com os olhos fixos naqueles dois madeiros atravessados.
Em sua simplicidade, seria o instrumento mais poderoso produzido pela mão do homem. Atravessaria os séculos em estandartes
que conquistariam o Velho Mundo. E romperia os mares no mastro das caravelas que descobririam o Mundo Novo.
Seria gravado a fogo no punho
das espadas, no escudo de aço dos
cruzados. Encimaria o pórtico
dos castelos. E, à sua sombra, peregrinos de todos os tempos procurariam refúgio e consolação.
Gosto de citar à minha maneira
e com as minhas palavras o prefácio que Wilson Barrett escreveu
para um romance de péssima literatura que foi filmado pela Paramount aí pelos anos 30. Humberto de Campos, no Brasil, fez o
mesmo. Giovanni Papini, na Itália, incorporou a mesma idéia em
sua biografia de Cristo.
Dois simples madeiros, toscamente aplainados, foram reproduzidos em ouro e prata no peito
de milhões de crentes e, transformados em mármore ou bronze,
assinalariam milhões de túmulos
daqueles que, confiados em sua
fé, esperam a ressurreição dos
mortos.
O gesto primário de quem assinala um ponto ou dele toma posse
é repetido todos os dias, há mais
de 2.000 anos, na cabeça das
crianças, no peito dos mortos, nas
mãos dos que casam, na testa dos
que pedem bênção.
E tudo nasceu naquela tarde,
em Jerusalém, quando dois carpinteiros, no cumprimento do ofício humilde, aplainavam dois
madeiros que nada significavam.
Em alguns lugares, a pena de
morte por crucificação importava
num suplício suplementar ao
condenado: ele teria de levar o
instrumento de sua tortura, geralmente a haste mais pesada. O
braço seria pregado no local do
sacrifício. Assim fora feito na véspera, com as duas cruzes destinadas aos dois ladrões.
Mas haviam recebido instruções dos soldados de Pôncio Pilatos para pregarem o braço na haste a fim de que o condenado daquela tarde tivesse maior peso para carregar. O que fizera ele para
merecer um castigo a mais? Só sabiam que era um forasteiro que
viera ao Templo para celebrar a
Páscoa, não roubara nem matara; que crime fizera ele?
Os dois carpinteiros ficariam
assombrados se conhecessem o
destino daquela encomenda. Nenhuma máquina fabricada pelo
homem teria a formidável força
daquele sinal. Nunca, na história
da humanidade, tão pouco representaria tanto.
Eles fecharam a oficina, um deles foi beber na nova taberna onde -diziam- se bebia um vinho
forte, produzido não muito longe
dali, nos vinhedos fracos de Jericó.
O outro foi para casa, pouco antes
da porta de Damasco, preparar-se para o sabbat. Uma grande festa que começaria quando a primeira estrela, solitária, brilhasse
sobre o deserto da Judéia.
(Esta crônica foi publicada aqui
mesmo, na Ilustrada, em 28 de
março de 1997. Irmãs de um convento em Florianópolis pediram-me que a republicasse na Sexta-Feira Santa deste ano.)
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