São Paulo, sexta-feira, 09 de abril de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Como nasceu o sinal que mudou a história

Dois carpinteiros, numa pequena oficina não muito longe do Templo, estão aplainando duas peças de madeira. Uma delas é maior do que a outra. A encomenda fora feita por alguém do palácio de Pilatos.
Os dois operários trabalham em silêncio, com suas ferramentas: a lâmina de ferro dentado para serrar, a lâmina polida para aplainar. Pouco depois, colocaram uma das peças cruzando com a outra.
Antes do meio-dia, virão buscar aquele instrumento de tortura e ignomínia, no qual deverá morrer um condenado de última hora. Na véspera, haviam entregue duas encomendas iguais para que nelas morressem dois ladrões, um de Jerusalém, outro de Samaria.
O trabalho termina: a cruz está pronta. Deixam-na do lado de fora, é um objeto que não será roubado por ninguém. Os judeus nem sequer a tocariam, sabiam o que ela significava. Somente os soldados romanos, que desprezavam tudo o que os judeus produziam, viriam apanhá-la para com ela se divertirem durante a execução do condenado.
Diziam que o haviam flagelado durante a noite e o coroado com espinhos. O próprio Pilatos o apresentara assim, exangue e humilhado, dizendo: "Eis o homem!".
Os dois carpinteiros fecham a oficina, um deles vai beber na nova taberna aberta no caminho que leva a Jericó, o outro se dirige para casa, pouco antes da porta de Damasco.
Eles não sabem que acabaram de criar o maior símbolo da história. Nem Fídias nem Michelangelo, ao esculpirem mármores imortais, jamais fizeram algo que se aproximasse da grandeza e da universalidade daqueles dois madeiros cruzados, expressão de opróbrio então, que logo se tornariam símbolo de fé e de graça.
Erguida num morro próximo à cidade, que desde os tempos de Davi chamavam de Gólgota, e que os romanos, supersticiosos, chamavam de Calvário (parecia um crânio sinistro e calvo), aquela cruz iniciaria sua trajetória mansamente. Durante os três séculos seguintes, enfrentaria a cólera dos imperadores de Roma. Venceria-os um a um. A simplicidade de seu "design" serviria de inspiração ao gesto do crente que se identificaria e, ao mesmo tempo, se propagaria.
Milhões de seres humanos morreriam com os olhos fixos naqueles dois madeiros atravessados. Em sua simplicidade, seria o instrumento mais poderoso produzido pela mão do homem. Atravessaria os séculos em estandartes que conquistariam o Velho Mundo. E romperia os mares no mastro das caravelas que descobririam o Mundo Novo.
Seria gravado a fogo no punho das espadas, no escudo de aço dos cruzados. Encimaria o pórtico dos castelos. E, à sua sombra, peregrinos de todos os tempos procurariam refúgio e consolação.
Gosto de citar à minha maneira e com as minhas palavras o prefácio que Wilson Barrett escreveu para um romance de péssima literatura que foi filmado pela Paramount aí pelos anos 30. Humberto de Campos, no Brasil, fez o mesmo. Giovanni Papini, na Itália, incorporou a mesma idéia em sua biografia de Cristo.
Dois simples madeiros, toscamente aplainados, foram reproduzidos em ouro e prata no peito de milhões de crentes e, transformados em mármore ou bronze, assinalariam milhões de túmulos daqueles que, confiados em sua fé, esperam a ressurreição dos mortos.
O gesto primário de quem assinala um ponto ou dele toma posse é repetido todos os dias, há mais de 2.000 anos, na cabeça das crianças, no peito dos mortos, nas mãos dos que casam, na testa dos que pedem bênção.
E tudo nasceu naquela tarde, em Jerusalém, quando dois carpinteiros, no cumprimento do ofício humilde, aplainavam dois madeiros que nada significavam. Em alguns lugares, a pena de morte por crucificação importava num suplício suplementar ao condenado: ele teria de levar o instrumento de sua tortura, geralmente a haste mais pesada. O braço seria pregado no local do sacrifício. Assim fora feito na véspera, com as duas cruzes destinadas aos dois ladrões.
Mas haviam recebido instruções dos soldados de Pôncio Pilatos para pregarem o braço na haste a fim de que o condenado daquela tarde tivesse maior peso para carregar. O que fizera ele para merecer um castigo a mais? Só sabiam que era um forasteiro que viera ao Templo para celebrar a Páscoa, não roubara nem matara; que crime fizera ele?
Os dois carpinteiros ficariam assombrados se conhecessem o destino daquela encomenda. Nenhuma máquina fabricada pelo homem teria a formidável força daquele sinal. Nunca, na história da humanidade, tão pouco representaria tanto.
Eles fecharam a oficina, um deles foi beber na nova taberna onde -diziam- se bebia um vinho forte, produzido não muito longe dali, nos vinhedos fracos de Jericó. O outro foi para casa, pouco antes da porta de Damasco, preparar-se para o sabbat. Uma grande festa que começaria quando a primeira estrela, solitária, brilhasse sobre o deserto da Judéia.
(Esta crônica foi publicada aqui mesmo, na Ilustrada, em 28 de março de 1997. Irmãs de um convento em Florianópolis pediram-me que a republicasse na Sexta-Feira Santa deste ano.)



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