São Paulo, segunda-feira, 09 de abril de 2007

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NELSON ASCHER

Como o rei de um país chuvoso

Se houve um produto que se difundiu pelos andares e recantos do edifício social, foi o tédio

UM ESPECTRO ronda o mundo atual: o espectro do tédio. Ele se manifesta de diversas maneiras. Algumas de suas vítimas invadem o shopping center e, empunhando um cartão de crédito, comprometem o futuro do marido ou da mulher e do filhos. Outros entram na lanchonete e, kalashnikov em mãos, partem, relutantemente acompanhados, rumo ao noticiário vespertino. A média, porém, opta por ficar horas diante da TV, assistindo a "reality shows", os quais, por razões que me escapam, tornam interessante para seu público a vida comum de estranhos, ou seja, algo idêntico à própria rotina considerada vazia, claustrofóbica.
E, ainda que muitos não tomem o tédio como causa principal, não são poucos os que aceitariam que ele desempenha um papel em hábitos e atitudes tão diferentes entre si como o de se dopar com álcool ou drogas variadas em busca de uma realidade alternativa e o de ouvir num templo tal ou qual descrição emocionante dos conflitos contemporâneos para, depois, seguir os ensinamentos de clérigos exaltados. Quem quer que escolha uma dessas vias (escolha não raro ditada apenas por pequenas variações temperamentais e fatores contingentes) o faz, pelo menos em parte, para escapar, temporariamente que seja, ao enfado onipresente.
O panorama geral é ainda pior. O mal ataca hoje em dia faixas etárias que, uma ou duas gerações atrás, julgávamos naturalmente imunizadas a seu contágio. Crianças sempre foram capazes de se divertir umas com as outras ou até sozinhas. Dotadas de cérebros que, como esponjas, tudo absorvem e de um ambiente, qualquer um, no qual tudo é novo, tudo é infinito, nunca lhes faltam dados e informações a processar. Elas não precisam ser entretidas pelos adultos, pois o que quer que estes façam ou deixem de fazer lhes desperta, por definição, a curiosidade natural e aguça seus instintos analíticos. E, todavia, os pais se vêem cada vez mais compelidos a inventar maneiras de distrair seus filhos durante as horas ociosas destes, um conceito que, na minha infância, inexistia.
Se o mal em si nada tem de original e, ao que tudo indica, surgiu, assim como o medo, o nojo e a raiva, junto com nossa espécie ou, quem sabe, antes, também é verdade que, durante milênios, somente uma minoria dispunha das precondições necessárias para sofrer dele. Um homem cujas refeições da semana inteira dependiam do que conseguiria caçar na segunda-feira, antes de, na terça-feira, estar fraco o bastante para se converter em caça, ou uma mulher que, de sol a sol, trabalhava com a enxada ou o pilão, nenhum deles tinha tempo de sentir o tédio que, para se manifestar em grande escala, pressupõe ócio abundante e sistemático.
Por isso é que, até onde a memória coletiva alcança, o problema quase sempre se restringia ao topo da pirâmide social, a reis, nobres, magnatas, aos membros privilegiados de sociedades que, organizadas e avançadas, transformavam a faina abusiva da maioria no luxo de pouquíssimos eleitos. O tédio, portanto, foi um produto de luxo, e isso tão recentemente, que Baudelaire, para, há século e meio, descrevê-lo, comparou-se ao rei de um país chuvoso, como se experimentar delicadeza tão refinada elevasse socialmente quem não passava de "aristocrata do espírito".
Coube à Revolução Industrial produzir em massa aquilo que, previamente, eram raridades reservadas a uma elite mínima. E, se houve um produto que se difundiu com sucesso notável pelos mais inesperados andares e recantos do edifício social, foi o tédio. Nem se requer uma fartura de Primeiro Mundo para se chegar à sua massificação. Basta, a rigor, que, à satisfação do biologicamente básico, se associe o cerceamento de outras possibilidades (como, inclusive, a da fuga ou da emigração), para que o tempo ocioso ou inútil se encarregue do resto. Foi assim que, após as emoções fornecidas por Stálin e Hitler, os países socialistas se revelaram exímios fabricantes de tédio, único bem em cuja produção competiram à altura com seus rivais capitalistas.
O tédio não é piada, nem um problema menor. Ele é central. Caso inexistisse, não haveria, por exemplo, toda uma indústria do entretenimento e tantas fortunas decorrentes dela. Seja como for, nem esta nem soluções tradicionais (a alta cultura, a religião organizada) darão conta de seus impasses. Que fazer com essa novidade histórica, as massas de crianças e jovens perpetuamente desempregados, funcionários, gente aposentada e cidadãos em geral ameaçados não pela fome, guerra ou epidemias, mas pelo tédio, algo que ainda ontem afetava apenas alguns monarcas?


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