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NELSON ASCHER
Como o rei de um país chuvoso
Se houve um produto que se difundiu pelos andares e recantos do edifício social, foi o tédio
UM ESPECTRO ronda o mundo
atual: o espectro do tédio. Ele
se manifesta de diversas maneiras. Algumas de suas vítimas invadem o shopping center e, empunhando um cartão de crédito, comprometem o futuro do marido ou da
mulher e do filhos. Outros entram
na lanchonete e, kalashnikov em
mãos, partem, relutantemente
acompanhados, rumo ao noticiário
vespertino. A média, porém, opta
por ficar horas diante da TV, assistindo a "reality shows", os quais, por
razões que me escapam, tornam interessante para seu público a vida
comum de estranhos, ou seja, algo
idêntico à própria rotina considerada vazia, claustrofóbica.
E, ainda que muitos não tomem o
tédio como causa principal, não são
poucos os que aceitariam que ele desempenha um papel em hábitos e
atitudes tão diferentes entre si como
o de se dopar com álcool ou drogas
variadas em busca de uma realidade
alternativa e o de ouvir num templo
tal ou qual descrição emocionante
dos conflitos contemporâneos para,
depois, seguir os ensinamentos de
clérigos exaltados. Quem quer que
escolha uma dessas vias (escolha
não raro ditada apenas por pequenas variações temperamentais e fatores contingentes) o faz, pelo menos em parte, para escapar, temporariamente que seja, ao enfado onipresente.
O panorama geral é ainda pior. O
mal ataca hoje em dia faixas etárias
que, uma ou duas gerações atrás, julgávamos naturalmente imunizadas
a seu contágio. Crianças sempre foram capazes de se divertir umas com
as outras ou até sozinhas. Dotadas
de cérebros que, como esponjas, tudo absorvem e de um ambiente,
qualquer um, no qual tudo é novo,
tudo é infinito, nunca lhes faltam
dados e informações a processar.
Elas não precisam ser entretidas pelos adultos, pois o que quer que estes
façam ou deixem de fazer lhes desperta, por definição, a curiosidade
natural e aguça seus instintos analíticos. E, todavia, os pais se vêem cada vez mais compelidos a inventar
maneiras de distrair seus filhos durante as horas ociosas destes, um
conceito que, na minha infância,
inexistia.
Se o mal em si nada tem de original e, ao que tudo indica, surgiu, assim como o medo, o nojo e a raiva,
junto com nossa espécie ou, quem
sabe, antes, também é verdade que,
durante milênios, somente uma minoria dispunha das precondições
necessárias para sofrer dele. Um homem cujas refeições da semana inteira dependiam do que conseguiria
caçar na segunda-feira, antes de, na
terça-feira, estar fraco o bastante
para se converter em caça, ou uma
mulher que, de sol a sol, trabalhava
com a enxada ou o pilão, nenhum
deles tinha tempo de sentir o tédio
que, para se manifestar em grande
escala, pressupõe ócio abundante e
sistemático.
Por isso é que, até onde a memória
coletiva alcança, o problema quase
sempre se restringia ao topo da pirâmide social, a reis, nobres, magnatas, aos membros privilegiados de
sociedades que, organizadas e avançadas, transformavam a faina abusiva da maioria no luxo de pouquíssimos eleitos. O tédio, portanto, foi
um produto de luxo, e isso tão recentemente, que Baudelaire, para, há
século e meio, descrevê-lo, comparou-se ao rei de um país chuvoso, como se experimentar delicadeza tão
refinada elevasse socialmente quem
não passava de "aristocrata do espírito".
Coube à Revolução Industrial
produzir em massa aquilo que, previamente, eram raridades reservadas a uma elite mínima. E, se houve
um produto que se difundiu com sucesso notável pelos mais inesperados andares e recantos do edifício
social, foi o tédio. Nem se requer
uma fartura de Primeiro Mundo para se chegar à sua massificação. Basta, a rigor, que, à satisfação do biologicamente básico, se associe o cerceamento de outras possibilidades
(como, inclusive, a da fuga ou da
emigração), para que o tempo ocioso
ou inútil se encarregue do resto. Foi
assim que, após as emoções fornecidas por Stálin e Hitler, os países socialistas se revelaram exímios fabricantes de tédio, único bem em cuja
produção competiram à altura com
seus rivais capitalistas.
O tédio não é piada, nem um problema menor. Ele é central. Caso
inexistisse, não haveria, por exemplo, toda uma indústria do entretenimento e tantas fortunas decorrentes dela. Seja como for, nem esta
nem soluções tradicionais (a alta
cultura, a religião organizada) darão
conta de seus impasses. Que fazer
com essa novidade histórica, as massas de crianças e jovens perpetuamente desempregados, funcionários, gente aposentada e cidadãos
em geral ameaçados não pela fome,
guerra ou epidemias, mas pelo tédio,
algo que ainda ontem afetava apenas alguns monarcas?
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