São Paulo, quarta-feira, 09 de abril de 2008

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MARCELO COELHO

Nuvens, pássaros, prazeres

Quem adquire mais conhecimento tem mais prazer: vejo que vale para as nuvens também

O POETA Charles Baudelaire (1821-1867) tinha um senso quase teatral da surpresa, do "grande golpe" que resolve, nos últimos versos do poema, o sentido das metáforas que se acumulavam nas estrofes precedentes.
É o caso, por exemplo, de "O Albatroz", descrição inicialmente "neutra" do que acontece com aquele "vasto pássaro dos mares" quando os marinheiros o capturam, para divertir-se, no navio. O "alado viajante", forçado a se equilibrar nas duas patas, com as asas arrastando no tombadilho, torna-se cômico, feio, patético.
O leitor acompanha a descrição do episódio sem saber, entretanto, qual o motivo, a finalidade do poema em seu conjunto. Vem então a última estrofe, que esclarece dramaticamente a situação.
É que o Poeta (claro que com "p" maiúsculo) é semelhante ao "príncipe dos ares". "Exilado sobre o chão", suas asas gigantescas o impedem de caminhar.
Sempre imagino esse poema sendo declamado à moda antiga, com tremores de voz e gesticulação exagerada. Convenhamos que essa auto-idealização do vate, capaz de enfrentar tempestades e reinar sobre o firmamento, corresponde ao lado mais antipático do romantismo, e que o "grand finale" da última metáfora possui, na sua revelação súbita, um não sei quê de canastrice.
Mas os versos desculpam tudo, e Baudelaire não seria Baudelaire se muitos dos seus poemas não funcionassem como uma majestosa acumulação de nuvens negras, preparando o relâmpago e o aguaceiro emocional do desfecho.
Essa teatralidade fica mais evidente, e pior, nos seus poemas em prosa, que muita gente aqui no Brasil acaba conhecendo antes das "Flores do Mal". Mas é de dois poemas em prosa de Baudelaire que me lembrei quando recebi pelo correio um livro bizarro e belíssimo, fartamente ilustrado, cujo nome deixo para mais adiante.
Numa curta peça intitulada "O Estrangeiro", Baudelaire inventa um diálogo que serve para encaminhar o leitor até a surpresa (meio besta) do final. Traduzo livremente.
"A quem amas com mais fervor, homem enigmático? Teu pai, tua mãe, tua irmã ou teu irmão?" Ele diz não ter pai, nem mãe, nem irmã, nem irmão. "Teus amigos?"
Esta palavra, responde o homem, "tem um sentido que até hoje permaneceu desconhecido para mim".
A pátria? "Ignoro em que latitude se situa." E assim vai, até que lhe perguntam: "O que amas então, extraordinário estrangeiro?". Resposta teatral: "As nuvens... as nuvens que passam... lá longe... as maravilhosas nuvens!".
Melhor, em outro poema em prosa bastante parecido, o elogio que Baudelaire faz das nuvens: "Moventes arquiteturas que Deus faz de vapores, maravilhosas construções do impalpável".
Aqui, o senso do sólido e do efêmero se combina lindamente, e bem que poderia ser a epígrafe do livro (chego enfim a ele) que recebi pelo correio.
É o "Guia do Observador de Nuvens" (editora Intrínseca), do jornalista e "nuvólogo" inglês Gavin Pretor-Pinney. É uma espécie de tratado, sistemático e cheio de bom humor, sobre a arte de ver, apreciar e identificar cirrus, cúmulus e nimbus, em suas dezenas de variantes.
É também uma lição de vida, que me perdoem essa incursão na auto-ajuda. Pretor-Pinney reclama da pobreza mental dos que consideram de "tempo bom" os dias sem nenhuma nuvem no horizonte. "Alguém precisava sair em defesa das nuvens", diz o autor, que fundou, com estatuto e declaração de princípios, a The Cloud Appreciation Society (sociedade de apreciação de nuvens) -na internet, www.cloudappreciationsociety.org.
Neste começo de abril, boa época para nuvens, escrevo diante de uma triste e úmida cortina cinzenta, quase uniforme no céu à minha frente. Nada de notável, mas nisso é que está toda a diferença.
Vou-me convencendo de que, ao contrário do que dizia o Eclesiastes, quem adquire mais conhecimento ganha mais felicidade ou, pelo menos, mais prazer. Vale para o vinho, para a música, para a poesia... e vejo que vale para as nuvens também. Pelo que entendi, a massa escura que vejo é uma grande camada de Stratocumulus, que tendem a ter "uma variedade de tons muito maior que a da Stratus" (mantenho a grafia do livro). Provavelmente há uma Cumulunimbus encaixada no meio da cortina, invisível para quem está no chão, dando peso de chuva ao conjunto.
Não sei se é isso. Os albatrozes podem explicar melhor do que se trata. Gavin Pretor-Pinney é um deles.


coelhofsp@uol.com.br

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