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Biografia expõe a face oculta de François Truffaut
Serge Toubiana,
diretor de redação do
"Cahiers du Cinéma",
fala à Folha sobre
o cineasta francês
que passou a vida
se protegendo do
mundo exterior
Rosane Beckierman/Folha Imagem
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Serge Toubiana, co-autor de "François Truffaut - Uma Biografia"
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INÁCIO ARAUJO
enviado especial ao Rio
Na história do cinema moderno,
François Truffaut (1932-1984) tem
um papel duplo. Nos anos 50, ele é
o polemista brilhante, o garoto
que, com uma penada, destrói as
maiores reputações do cinema
francês "de qualidade".
A partir de seu primeiro filme,
"Os Incompreendidos" (1958),
Truffaut começa a construir uma
nova imagem: o homem elegante,
afável, profissional, que nunca fala mal de ninguém.
É no encontro dessas duas imagens que Serge Toubiana e Antoine De Baecque centraram fogo em
"François Truffaut - Uma Biografia".
Ao destruir a lenda do Truffaut
bom-moço, o livro nos mostra um
Truffaut bem mais complexo: individualista, malandro, ambicioso, inteligente, cheio de dúvidas.
Mas, mais que o grande cineasta e
o grande crítico, o que essa biografia coloca em relevo é uma história
pessoal mirabolante. "Um romance de Dickens", como define
Toubiana. E, por outro lado, um
homem que vive, interpreta e participa como poucos da vida intelectual deste século.
É sobre a complexa existência de
François Truffaut (1932-1984) que
Serge Toubiana, diretor de redação dos "Cahiers du Cinéma" falou à Folha no Rio, onde está para
o lançamento de seu livro, hoje,
no Estação Botafogo.
Folha - Por que vocês quiseram
biografar Truffaut?
Serge Toubiana - Conheci
Truffaut em 1975, com Serge Daney, que na época era o diretor de
redação dos "Cahiers". Quando
ele morreu, em 1984, fiquei bastante frustrado. Eu tinha começado a conhecê-lo, sentia que ele
gostava de mim, eu o admirava,
mas ele tinha dificuldade para falar, era muito tímido.
Quanto mais eu o conhecia, menos eu apreciava essa imagem oficial que ele havia construído, que
era a de um homem, digamos, respeitável, sério, que trabalhava no
sistema.
Quanto mais eu via seus filmes,
mais eu percebia algo de mais violento, de mais secreto em sua obra.
E era isso que me interessava.
Tempos depois fiz com Michel
Pascal um documentário, "François Truffaut - Portraits Volés"
(François Truffaut - Retratos Roubados), que é sobre o Truffaut romanesco, um homem que fechava
sua vida, que compartimentava
seus segredos, seus amores, sua infância, seu sucesso, seu percurso
de cineasta.
Um dia, depois que o filme tinha
sido terminado, Antoine De Baecque me disse que era preciso fazer
uma biografia. Seria um modo de
ir mais longe, de cavoucar, ir conhecer os arquivos etc.
Nós procuramos a família. Madeleine Morgenstern (primeira
mulher de Truffaut) e as filhas nos
deram a autorização. Isso era muito importante, porque com a autorização podíamos ir aos arquivos
de Truffaut. E Truffaut guardou
tudo. Cartas, cartões, dossiês sobre os filmes, por período, dossiês
médicos, fotos de família. Tudo.
Como De Baecque é historiador,
ele trabalhou nos arquivos. Eu fiz
novas entrevistas, aprofundei o
que tinha feito para o filme. Depois, nós misturamos as duas visões: uma, mais histórica, a outra,
mais romanesca. No total, foram
três anos de trabalho.
Folha - Há um aspecto romanesco extraordinário no livro. Mas, ao
mesmo tempo, esse romanesco
nos fala muito sobre o destino do
cineasta e do cinema francês.
Toubiana - Sem dúvida. A infância de Truffaut é um romance
do século 19, um Dickens. O que é
mais comovente, no entanto, é que
ele nasceu em 1932, mas sua história e seu temperamento remetem
ao começo do século.
Ele morre em 1984, muito jovem,
com 52 anos, mas deixa a impressão de que pertence a uma era clássica. Penso que, se ele vivesse hoje,
se sentiria muito desconfortável.
Ele não suportaria um telefone
celular, por exemplo. Ele passou a
vida se protegendo do mundo exterior, criando barreiras. O celular
é uma coisa que te torna acessível
todo o tempo. Então, Truffaut é
1932-1984, mas penso que nos remete ao início do século.
Folha - Qual o papel do cinema
na formação de Truffaut?
Toubiana - Sua aprendizagem
do mundo se dá no cinema, de maneira clandestina em relação à
guerra, à família, à escola. Depois
há André Bazin, que lhe estende a
mão. Por fim, há a Cinemateca,
seu diretor, Henri Langlois, a admiração por Hitchcock, Renoir,
Ophuls, Bresson, Fritz Lang... Enfim, há um mundo magnífico que
se abre para ele...
É uma época muito densa da história do cinema, muito viva, cheia
de figuras, de polêmicas. E hoje é
em grande parte por meio do olhar
de Truffaut que eu ou você compreendemos essa época.
Agora, é nesse mesmo momento
que vai preparando o terreno para
se tornar cineasta.
Folha - E nesse particular ele não
se mostra um santo, longe disso.
Toubiana - Com certeza. Ele é
um malandro. E é isso que eu gosto
nele. Não é o Truffaut de gravata. É
uma imagem bem mais crua, bem
mais forte. Um caráter.
Ele era muito inteligente, ao
mesmo tempo, muito sedutor, calculista. Com ele pode-se perceber
muito bem como um criador se
coloca em seu tempo, em sua vida,
como a cada filme se coloca questões, dúvidas. Muitas dúvidas. É
alguém que duvida todo o tempo,
de si mesmo, de seu talento. É alguém também que teve mais fracassos que sucessos, é bom não esquecer.
Nossa idéia de biografia, então,
era entrar na vida de Truffaut, tentando reencontrar as condições
mesmo de sua evolução, de seu
destino, sua relação com as mulheres, com os segredos, pois ele
tinha um gosto enorme pelo segredo.
Folha - Há um momento dramático na vida de Truffaut, que é a ruptura com Godard, após "A Noite
Americana", e que não está muito
desenvolvido no livro.
Toubiana - Godard não queria
falar. Esse foi o problema. Eu me
dou muito bem com ele. Mas ele é
alguém bem complicado e nunca
quis falar sobre isso.
A primeira vez que o procurei,
ele me disse: "François? Não conheci". Era um modo de dizer que
não queria falar. Uma outra vez,
ele me disse essa frase terrível:
"Como crítico, eu gosto muito de
Truffaut, era melhor do que eu.
Mas eu não gosto de seus filmes".
Eu penso que é uma afirmação
de má-fé, porque lendo os "Cahiers" do começo dos 60 a gente vê
que Godard gosta muito dos primeiros filmes de Truffaut. Existiu
uma proximidade muito grande
entre eles, mesmo que Truffaut seja um clássico e Godard um formalista.
Hoje ele diz que não gosta de nada. De modo que é uma posição a
tal ponto niilista, tão radical, que
não dá nem para falar.
Folha - O livro mostra um Truffaut com extraordinário sentido de
independência. Ele chega a se
aproximar de Lucien Rebatet...
Toubiana - Que era um fascista.
Mas nos anos 50, Truffaut é muito
fiel ao individualismo. Ele se fez
sozinho, autodidata, odiava a mãe,
flertava com a delinquência, roubava, desertou, teve sífilis porque
frequentava bordéis...
Folha - Não por acaso, teve uma
relação profunda com Jean Genet.
Toubiana - Isso ninguém sabia.
Ninguém. Genet ficou seduzido
por ele.
O fato é que Truffaut aprende a
vida vivendo, sem leis de conduta,
ou com leis imorais, com valores
que são seus, mas são coisas que
ele tira da literatura ou do cinema.
Ele é muito atraído pelo indivíduo, contra a sociedade, contra a
moral dominante, contra a esquerda dominante. Ele prefere os
proscritos, os aventureiros.
Ora, Rebatet foi um grande crítico, mas era ao mesmo tempo um
fascista, um anti-semita. E nesse
momento Truffaut é de uma ambiguidade fundamental.
Depois ele vai mudar. Vai casar
com uma judia, descobrir que seu
próprio pai era judeu, vai defender
Israel. Vai se tornar inclusive um
homem de esquerda.
Folha - Por que Catherine Deneuve processou a Gallimard por causa do livro?
Toubiana - Ela considerou que
certas passagens do livro feriam
sua intimidade. Ela pediu muito
dinheiro. Conseguiu só um pouco... Pediu muitos cortes. Conseguiu alguns.
Ela não queria que aparecesse no
livro uma parte de sua vida. O que
eu respondo a isso é que não me
interessa a vida dela, mas a dele. E
houve um momento em que ele foi
apaixonado por ela, viveu com ela.
Durou um ano e meio.
Quando aconteceu a ruptura, ele
entrou em depressão, foi a uma
clínica, passou por sonoterapia,
tudo isso. Ele saiu da depressão fazendo "Duas Inglesas e o Amor",
que ele rodou num estado de enorme fragilidade, que o filme exprime bem. É uma pena, foi um fracasso.
Folha - É um filme que eu não conheço, porque naquela época todos nós éramos a favor de Godard
e contra Truffaut.
Toubiana - Eu também.
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