São Paulo, quinta, 9 de abril de 1998

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Biografia expõe a face oculta de François Truffaut

Serge Toubiana, diretor de redação do "Cahiers du Cinéma", fala à Folha sobre o cineasta francês que passou a vida se protegendo do mundo exterior

Rosane Beckierman/Folha Imagem
Serge Toubiana, co-autor de "François Truffaut - Uma Biografia"


INÁCIO ARAUJO
enviado especial ao Rio

Na história do cinema moderno, François Truffaut (1932-1984) tem um papel duplo. Nos anos 50, ele é o polemista brilhante, o garoto que, com uma penada, destrói as maiores reputações do cinema francês "de qualidade".
A partir de seu primeiro filme, "Os Incompreendidos" (1958), Truffaut começa a construir uma nova imagem: o homem elegante, afável, profissional, que nunca fala mal de ninguém.
É no encontro dessas duas imagens que Serge Toubiana e Antoine De Baecque centraram fogo em "François Truffaut - Uma Biografia".
Ao destruir a lenda do Truffaut bom-moço, o livro nos mostra um Truffaut bem mais complexo: individualista, malandro, ambicioso, inteligente, cheio de dúvidas. Mas, mais que o grande cineasta e o grande crítico, o que essa biografia coloca em relevo é uma história pessoal mirabolante. "Um romance de Dickens", como define Toubiana. E, por outro lado, um homem que vive, interpreta e participa como poucos da vida intelectual deste século.
É sobre a complexa existência de François Truffaut (1932-1984) que Serge Toubiana, diretor de redação dos "Cahiers du Cinéma" falou à Folha no Rio, onde está para o lançamento de seu livro, hoje, no Estação Botafogo.

Folha - Por que vocês quiseram biografar Truffaut?
Serge Toubiana -
Conheci Truffaut em 1975, com Serge Daney, que na época era o diretor de redação dos "Cahiers". Quando ele morreu, em 1984, fiquei bastante frustrado. Eu tinha começado a conhecê-lo, sentia que ele gostava de mim, eu o admirava, mas ele tinha dificuldade para falar, era muito tímido.
Quanto mais eu o conhecia, menos eu apreciava essa imagem oficial que ele havia construído, que era a de um homem, digamos, respeitável, sério, que trabalhava no sistema.
Quanto mais eu via seus filmes, mais eu percebia algo de mais violento, de mais secreto em sua obra. E era isso que me interessava.
Tempos depois fiz com Michel Pascal um documentário, "François Truffaut - Portraits Volés" (François Truffaut - Retratos Roubados), que é sobre o Truffaut romanesco, um homem que fechava sua vida, que compartimentava seus segredos, seus amores, sua infância, seu sucesso, seu percurso de cineasta.
Um dia, depois que o filme tinha sido terminado, Antoine De Baecque me disse que era preciso fazer uma biografia. Seria um modo de ir mais longe, de cavoucar, ir conhecer os arquivos etc.
Nós procuramos a família. Madeleine Morgenstern (primeira mulher de Truffaut) e as filhas nos deram a autorização. Isso era muito importante, porque com a autorização podíamos ir aos arquivos de Truffaut. E Truffaut guardou tudo. Cartas, cartões, dossiês sobre os filmes, por período, dossiês médicos, fotos de família. Tudo.
Como De Baecque é historiador, ele trabalhou nos arquivos. Eu fiz novas entrevistas, aprofundei o que tinha feito para o filme. Depois, nós misturamos as duas visões: uma, mais histórica, a outra, mais romanesca. No total, foram três anos de trabalho.
Folha - Há um aspecto romanesco extraordinário no livro. Mas, ao mesmo tempo, esse romanesco nos fala muito sobre o destino do cineasta e do cinema francês.
Toubiana -
Sem dúvida. A infância de Truffaut é um romance do século 19, um Dickens. O que é mais comovente, no entanto, é que ele nasceu em 1932, mas sua história e seu temperamento remetem ao começo do século.
Ele morre em 1984, muito jovem, com 52 anos, mas deixa a impressão de que pertence a uma era clássica. Penso que, se ele vivesse hoje, se sentiria muito desconfortável.
Ele não suportaria um telefone celular, por exemplo. Ele passou a vida se protegendo do mundo exterior, criando barreiras. O celular é uma coisa que te torna acessível todo o tempo. Então, Truffaut é 1932-1984, mas penso que nos remete ao início do século.
Folha - Qual o papel do cinema na formação de Truffaut?
Toubiana -
Sua aprendizagem do mundo se dá no cinema, de maneira clandestina em relação à guerra, à família, à escola. Depois há André Bazin, que lhe estende a mão. Por fim, há a Cinemateca, seu diretor, Henri Langlois, a admiração por Hitchcock, Renoir, Ophuls, Bresson, Fritz Lang... Enfim, há um mundo magnífico que se abre para ele...
É uma época muito densa da história do cinema, muito viva, cheia de figuras, de polêmicas. E hoje é em grande parte por meio do olhar de Truffaut que eu ou você compreendemos essa época.
Agora, é nesse mesmo momento que vai preparando o terreno para se tornar cineasta.
Folha - E nesse particular ele não se mostra um santo, longe disso.
Toubiana -
Com certeza. Ele é um malandro. E é isso que eu gosto nele. Não é o Truffaut de gravata. É uma imagem bem mais crua, bem mais forte. Um caráter.
Ele era muito inteligente, ao mesmo tempo, muito sedutor, calculista. Com ele pode-se perceber muito bem como um criador se coloca em seu tempo, em sua vida, como a cada filme se coloca questões, dúvidas. Muitas dúvidas. É alguém que duvida todo o tempo, de si mesmo, de seu talento. É alguém também que teve mais fracassos que sucessos, é bom não esquecer.
Nossa idéia de biografia, então, era entrar na vida de Truffaut, tentando reencontrar as condições mesmo de sua evolução, de seu destino, sua relação com as mulheres, com os segredos, pois ele tinha um gosto enorme pelo segredo.
Folha - Há um momento dramático na vida de Truffaut, que é a ruptura com Godard, após "A Noite Americana", e que não está muito desenvolvido no livro.
Toubiana -
Godard não queria falar. Esse foi o problema. Eu me dou muito bem com ele. Mas ele é alguém bem complicado e nunca quis falar sobre isso.
A primeira vez que o procurei, ele me disse: "François? Não conheci". Era um modo de dizer que não queria falar. Uma outra vez, ele me disse essa frase terrível: "Como crítico, eu gosto muito de Truffaut, era melhor do que eu. Mas eu não gosto de seus filmes".
Eu penso que é uma afirmação de má-fé, porque lendo os "Cahiers" do começo dos 60 a gente vê que Godard gosta muito dos primeiros filmes de Truffaut. Existiu uma proximidade muito grande entre eles, mesmo que Truffaut seja um clássico e Godard um formalista.
Hoje ele diz que não gosta de nada. De modo que é uma posição a tal ponto niilista, tão radical, que não dá nem para falar.
Folha - O livro mostra um Truffaut com extraordinário sentido de independência. Ele chega a se aproximar de Lucien Rebatet...
Toubiana -
Que era um fascista. Mas nos anos 50, Truffaut é muito fiel ao individualismo. Ele se fez sozinho, autodidata, odiava a mãe, flertava com a delinquência, roubava, desertou, teve sífilis porque frequentava bordéis...
Folha - Não por acaso, teve uma relação profunda com Jean Genet.
Toubiana -
Isso ninguém sabia. Ninguém. Genet ficou seduzido por ele.
O fato é que Truffaut aprende a vida vivendo, sem leis de conduta, ou com leis imorais, com valores que são seus, mas são coisas que ele tira da literatura ou do cinema.
Ele é muito atraído pelo indivíduo, contra a sociedade, contra a moral dominante, contra a esquerda dominante. Ele prefere os proscritos, os aventureiros.
Ora, Rebatet foi um grande crítico, mas era ao mesmo tempo um fascista, um anti-semita. E nesse momento Truffaut é de uma ambiguidade fundamental.
Depois ele vai mudar. Vai casar com uma judia, descobrir que seu próprio pai era judeu, vai defender Israel. Vai se tornar inclusive um homem de esquerda.
Folha - Por que Catherine Deneuve processou a Gallimard por causa do livro?
Toubiana -
Ela considerou que certas passagens do livro feriam sua intimidade. Ela pediu muito dinheiro. Conseguiu só um pouco... Pediu muitos cortes. Conseguiu alguns.
Ela não queria que aparecesse no livro uma parte de sua vida. O que eu respondo a isso é que não me interessa a vida dela, mas a dele. E houve um momento em que ele foi apaixonado por ela, viveu com ela. Durou um ano e meio.
Quando aconteceu a ruptura, ele entrou em depressão, foi a uma clínica, passou por sonoterapia, tudo isso. Ele saiu da depressão fazendo "Duas Inglesas e o Amor", que ele rodou num estado de enorme fragilidade, que o filme exprime bem. É uma pena, foi um fracasso.
Folha - É um filme que eu não conheço, porque naquela época todos nós éramos a favor de Godard e contra Truffaut.
Toubiana -
Eu também.



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