São Paulo, Sexta-feira, 09 de Abril de 1999
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FILHA DE MEDÉIA

"Marília praticamente nasceu sob as luzes da ribalta. Manuel Pêra e Dinorah Marzullo, seus pais, casaram-se no palco de um teatro de Porto Alegre. Os teatros foram o parque de diversões de sua primeira filha, e os camarins, sua casa de bonecas. Ela preferia passar os dias e as noites naquele lugar sem a luz do sol, sem ventilação, entre cortinas empoeiradas e restos de cenário mofados que ficar em casa, na companhia de parentes: "O lugar mais feliz para mim era o teatro, onde tudo era bonito, iluminado, glamuroso. Eu queria passar o tempo todo lá, porque a realidade na minha infância era dura, pobre".
Da coxia, ou eventualmente da platéia, ela podia assistir um faz-de-conta ao vivo. Estava sempre aberta uma janela por onde ela podia fugir para um mundo de fantasia onde pessoas especiais, exóticas, fantásticas viviam, de maneira exacerbada, situações extremas. Marília convivia com personagens que as outras crianças só conheciam pelas ilustrações de livros, pelas telas de cinema e por obra de sua própria imaginação. E isso quase que diariamente, porque naquela época os espetáculos teatrais eram apresentados de terça a domingo, com matinês aos sábados, domingos e quintas-feiras. Como se não bastasse, eram seus pais, sua avó materna, seu tio paterno e os amigos destes que se transformavam naquelas criaturas e viviam acontecimentos fortes, alguns patéticos, leves e engraçados, a maioria deles tristes, aterrorizantes.
E então, em uma idade em que as crianças ainda não têm a capacidade de separar com clareza a realidade da fantasia, tanto que ainda acreditam que o Papai Noel, o coelhinho da Páscoa e a fada que troca dentes por moedas realmente existem, Marília transpôs a divisão entre coxia e palco, e começou a fingir que era uma das criaturas.
Poderia ser uma brincadeira. As crianças brincam de fingir que são outras crianças, adultos, heróis, vítimas, guerreiros, mocinhos e bandidos. Mas em sua estréia a menina de quatro anos precisou fingir que era a filha de uma feiticeira irada, colérica e atormentada pelo ciúme, pela humilhação e pelo abandono de seu marido, que, para se vingar, assassinava seu filho e... sua filha!
"A primeira vez em que entrei em cena foi pela mão de um ator mineiro chamado Sischiatti. Eu estava de mão dada com ele, e nós caminhamos por uma rampa por onde se chegava ao palco. Eu estava gelada, e minhas pernas tremiam. Naquele momento eu não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas hoje eu sei que aquele frio tremendo que eu sentia hoje poderia ser chamado de responsabilidade."
A única fala da menina era um grito dado atrás do cenário, onde "Madame" Morineau, tomada por Medéia, a estrangulava. Para completar a confusão, Manuel Pêra, o pai de Marília, interpretava Jasão, o marido amaldiçoado por abandonar a mãe de seus filhos por uma mulher mais jovem. E Dinorah Marzullo, sua mãe, era uma das belas mulheres do coro, além de ser uma mulher bem mais jovem que Morineau. Freud lamberia os beiços.
Mas esta tragédia grega era apenas uma das três peças que compunham um repertório da companhia de Henriette Morineau, com a qual a família Pêra viajou pelo Brasil afora. Sorte da ratinha de coxia que virou atriz, porque uma das outras era "Frenesi", um drama psicológico, mas a outra era uma peça infantil chamada "O Casaco Encantado".
Em "Frenesi" Marília vivia a filha de uma criada que roubava uma maçã da protagonista, ou seja, "Madame" Morineau, que a pegava em flagrante e exigia que sua mãe -que não era feita por Dinorah- batesse nela, o que acontecia depois de Marília dizer: "Não fui eu! Não fui eu!".
Em "O Casaco Encantado" a estreante dizia apenas uma palavra. Ela era o pajem do rei, e, quando o próprio anunciava: "Quem não cumprir as minhas leis...", Marília passava a mão direita em seu pescoço, como se cortasse a cabeça e dizia: "Lesco!". Neste conto de fadas Morineau era, segundo Marília, uma bruxa maravilhosa, de fazer a platéia inteira rir.
Trecho de "Vissi D'Arte"



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