São Paulo, Sexta-feira, 09 de Abril de 1999
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CINEMA ESTRÉIAS
"Inimigo do Estado" é thriller frio e pré-fabricado

THALES DE MENEZES
da Reportagem Local

"Inimigo do Estado", novo filme estrelado por Will Smith e pelo veterano Gene Hackman, é um eficiente thriller de espionagem. Com ação contínua, prende o espectador na poltrona e... Ei! Espere um pouco. Não é bem assim. Alguma coisa deu errado no filme, e não é muito simples de explicar.
O espectador exigente vai perceber o problema, mas é difícil para o crítico colocá-lo no papel. Até porque, no papel, "Inimigo de Estado" é um filmaço. Reúne uma boa história, um astro na crista da onda (o rapper Will Smith, de "Homens de Preto"), um veterano de prestígio inatacável (Gene Hackman, que dá credibilidade a qualquer produção) e um diretor competente (Tony Scott, uma versão "feijão com arroz" do irmão mais brilhante e inovador, Ridley).
No entanto, o filme nega fogo no quesito mais importante: emoção. Tudo é meticulosamente preparado para fazer sucesso, do sapato que Will Smith usa até a escolha de um tema querido entre os cinéfilos -a luta desigual de um indivíduo enfrentando o sistema opressor. Mas tudo é tão preparado que a emoção é falsa, não é orgânica.
Trata-se de um filme pré-fabricado. A sucessão de cenas de ação são mecânicas. O filme não dá chance ao espectador, que não consegue se envolver com o personagem principal. Sem essa ligação, fica difícil de torcer.
O filme é vítima da situação absurda imposta hoje em Hollywood. Investindo dezenas de milhões de dólares em produções que não podem falhar na bilheteria, os homens do dinheiro querem "garantia" de sucesso. Como não dá para convencer os sujeitos de que não existe isso no ramo do entretenimento, e ninguém contraria alguém com dezenas de milhões de dólares no bolso, foi criada uma "checagem" do potencial de cada filme.
Daí surgiram as sessões prévias para convidados. Esses espectadores respondem a um questionário exaustivo, que pergunta até o que eles acharam dos penteados dos atores coadjuvantes. Com os resultados na mão, os produtores ordenam mudanças para consertar o que não foi bem avaliado pela turma.

Patrocinadores
Qualquer cineasta está hoje sujeito a essa humilhação. Bem, exceto Steven Spielberg. Mas até James Cameron, na fase anterior a "Titanic", passou pela prova. E Tony Scott também não é exceção.
Seu "Inimigo de Estado" sofreu mudanças impostas pelas pesquisas e, pior, teve a intervenção direção dos inúmeros patrocinadores que colocaram seus produtos no filme e quiseram zelar pela imagem deles.
Por contrato, nenhum aparelho poderia apresentar defeito na tela. Com toda essa preocupação com espectadores e patrocinadores, o diretor, o roteirista e os atores não têm muito espaço para reclamar.
Will Smith, rapper de muito sucesso e ator conhecido nacionalmente nos EUA desde a série "The Fresh Prince of Bel-Air", veio do estrondoso estouro de bilheteria de "Homens de Preto" e brigou muito com a produção de "Inimigo de Estado". Saiu reclamando do trabalho, dizendo que não gostaria de fazer filmes com orçamentos tão grandes. "Muito dinheiro dá muito trabalho", disse Smith. Declaração esquisita para alguém que recebeu US$ 15 milhões pelo papel.
Smith interpreta um advogado que, sem querer, é testemunha de um crime. Disposto a eliminar a evidência, agentes do governo cercam o sujeito de todas as maneiras, vigiando sua casa, cancelando seus cartões de crédito e, lógico, tentando matá-lo de uma vez.
Há tentativas de tornar o personagem mais "humano", criando até uma crise conjugal que ele tenta abafar enquanto foge de agentes treinados para matar. Mas o esforço não dá resultado. A maior preocupação é enfileirar na tela um bando de produtos tecnológicos de última geração. Os agentes usam uma parafernália de deixar a equipe de "Truman Show" chupando o dedo.

Referência a Coppola
A presença de Gene Hackman tem um motivo especial. Mais do que um ator, ele é uma referência. "Inimigo do Estado" tenta prestar homenagem a "A Conversação", obra-prima dirigida por Francis Ford Coppola em 1974, estrelada pelo mesmo Hackman. Nos dois filmes, o personagem principal está envolvido com aparelhos que permitem a invasão de privacidade do indivíduo.
Há 25 anos, Hackman espionava. Agora, Smith é espionado. No filme de Coppola, transbordava da tela a discussão sobre a paranóia, com um final perturbador. Agora, tudo só tem serventia para algumas cenas de ação, umas piadinhas de Smith e a propaganda de aparelhos eletrônicos.
Poucos filmes deixaram tão explícitas as cenas de merchandising quanto este. A ponto de estarem espalhados pela cidade outdoors que mostram Smith, Hackman e o novíssimo celular de uma grande empresa, que vende seu produto como uma das estrelas do filme.
E o cinema, como fica?
E a arte, como fica?


Avaliação:



Filme: Inimigo do Estado Produção: EUA, 1988 Direção: Tony Scott Com: Will Smith, Gene Hackman Quando: a partir de hoje, nos cines Interlar Aricanduva 3, SP Market 9, Metrô Tatuapé 1, Paulista 2, Lar Center 2 e circuito


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