São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002

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GASTRONOMIA

A comida como ela é

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

"Era assim que nunca vi ninguém comer mais gostoso que a família Modesto. Demoradamente. Mastigação minuciosa e técnica, quase voluptuosa. Pouca fala, comentário, um ou outro. Esse molho pardo está o suco. Gente, esse porco está divino. Esse mocotó o céu..." Pedro Nava.
Qual foi sua última refeição memorável? Aquela em que estava desarmado, à vontade, o lugar se misturava à serena alegria, a comida caiu de um jeito certo e no ar havia a intuição de que o mundo é formado de coisas simples e pequenas que se repetem para o nosso gozo?
Muitas vezes me perguntam e me pergunto qual o segredo da boa comida. Os ingredientes são tantos, peças de um enorme jogo de armar, um Lego cheio de blocos empilhados e estruturados como os vocábulos de uma linguagem. Há sempre uma repetição de peças-chave, mas a linguagem é maleável, e as variáveis, sem fim.
O segredo de saber cozinhar talvez seja que não existe segredo nem conhecimento impenetrável. É mais uma técnica de passo a passo, adquirida, copiada, aprendida por um artesão cheio de paciência. É só prestar atenção, treinar um pouco, e um dia estamos lá, poderosos, com a capacidade de criar armações cheias de estilo.
E por que o estilo? Por que cada cozinheiro tem o seu? É que uma cabeça teve praia e siri, a dele teve manga no pé, a do outro, uma vendinha de beira de estrada, a daquele, um empório em Paris. Há experiências de leitões sagrados e sangrados, arroz arbório e azeitonas pretas, experiências que se condensam e se transformam em maneiras próprias e em jeitos diferentes de fazer a mesma coisa.
Os mais criativos têm medo das regras da linguagem culinária, pois não são regras? E que se tornem menos criativos por causa delas. Pois é o oposto. Sem linguagem, nada se cria; se a sua é vazia, sua comida será vazia, se for pobre, é preciso enriquecê-la, se não tem jogo de cintura, o menu será rígido, se é barroca, adivinhe.
Acontece que nos tempos de hoje houve uma quebra dessa linguagem específica da cozinha. Os vocábulos mais comezinhos se perderam. Quem tem as peças do bombom de nozes com finíssima glacê? De um pastel de nata que se dissolve na boca? De um caldo transparente? De uma coxinha de galinha cremosa e crocante por fora? As técnicas, os vocábulos sumiram junto com os processos, com as regras compartilhadas e, pior de tudo, com o professor. E é impossível fazer boa comida desvinculada dos elos com o passado.
O livro do chef mostra uma pirâmide de ovos de codorna manchados como tigres, e o bacalhau transformado em espuma a ser tomada com canudinho. O principiante estremece. Ele não quer saber daquilo, não sabe fazer aquilo, nunca viu aquilo, que fique para o cozinheiro, que é o especialista.
Acontece que o cozinheiro profissional também deixou escapar sua ligação com o elementar e com o básico. Os próprios cozinheiros não têm mais o que dividir. Perderam a intuição do real e se debatem nas redes de suas próprias invenções abstrusas. Passaram a cozinhar pensando nos guias, nas estrelas, em enormes quantidades de gente.
A tarefa principal da cozinha atual é a criação de uma linguagem compartilhada. Sidney Mintz, cito de memória, diz que um país só tem uma "cuisine" quando um grupo de pessoas divide o conhecimento de sua comida e, além de saber prepará-la e conhecer seu gosto, discute e comenta e critica essa comida. Uma comida com vida e específica de uma cultura tem que ser cheia de lembranças de infância e jeitos especiais de fazer coisas especiais. Comida vai mais fundo do que a receita da revista, é uma linguagem que se refaz de pessoa para pessoa, que se enriquece através de cada um, coisa viva que expressa nosso meio ambiente.
Na troca, no dividir e copiar, aumentamos e diminuímos os modelos; há os que se perdem para sempre (os docinhos finos de outrora), outros rareiam (um lombo de porco com sabor), outros nascem e se multiplicam (sushis), formando o estoque de onde arrancaremos as receitas novas.
Comida boa é aquela que aceitamos com naturalidade, que cozinhamos com a cabeça livre de preconceitos e de vergonhas. É comida sob a perspectiva de nós próprios e de nosso mundo, mas sem esquecer o outro que vai nos confirmar ainda mais quem somos. Cozinhar bem é estar solto, sem vergonha de mostrar a cara, fiéis a nós mesmos, ao nosso grupo, à nossa gente.
Resumindo. Você está com fome, vai para a cozinha e faz a receita de um chef famoso no mundo inteiro? Um peito de pombo defumado, com cuscuz de Israel, pimentões-sino recheados, avelãs e vinagrete de chocolate salgado? Com primeiro andar, segundo andar e mezanino?
Não faz e nem quer fazer. É mais ou menos isso aí.

ninahort@uol.com.br



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