|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
A comida como ela é
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
"Era assim que nunca vi
ninguém comer mais gostoso que a família Modesto. Demoradamente. Mastigação minuciosa e técnica, quase voluptuosa.
Pouca fala, comentário, um ou
outro. Esse molho pardo está o
suco. Gente, esse porco está divino. Esse mocotó o céu..." Pedro
Nava.
Qual foi sua última refeição memorável? Aquela em que estava
desarmado, à vontade, o lugar se
misturava à serena alegria, a comida caiu de um jeito certo e no ar
havia a intuição de que o mundo é
formado de coisas simples e pequenas que se repetem para o
nosso gozo?
Muitas vezes me perguntam e
me pergunto qual o segredo da
boa comida. Os ingredientes são
tantos, peças de um enorme jogo
de armar, um Lego cheio de blocos empilhados e estruturados
como os vocábulos de uma linguagem. Há sempre uma repetição de peças-chave, mas a linguagem é maleável, e as variáveis,
sem fim.
O segredo de saber cozinhar talvez seja que não existe segredo
nem conhecimento impenetrável.
É mais uma técnica de passo a
passo, adquirida, copiada, aprendida por um artesão cheio de paciência. É só prestar atenção, treinar um pouco, e um dia estamos
lá, poderosos, com a capacidade
de criar armações cheias de estilo.
E por que o estilo? Por que cada
cozinheiro tem o seu? É que uma
cabeça teve praia e siri, a dele teve
manga no pé, a do outro, uma
vendinha de beira de estrada, a
daquele, um empório em Paris.
Há experiências de leitões sagrados e sangrados, arroz arbório e
azeitonas pretas, experiências que
se condensam e se transformam
em maneiras próprias e em jeitos
diferentes de fazer a mesma coisa.
Os mais criativos têm medo das
regras da linguagem culinária,
pois não são regras? E que se tornem menos criativos por causa
delas. Pois é o oposto. Sem linguagem, nada se cria; se a sua é vazia,
sua comida será vazia, se for pobre, é preciso enriquecê-la, se não
tem jogo de cintura, o menu será
rígido, se é barroca, adivinhe.
Acontece que nos tempos de
hoje houve uma quebra dessa linguagem específica da cozinha. Os
vocábulos mais comezinhos se
perderam. Quem tem as peças do
bombom de nozes com finíssima
glacê? De um pastel de nata que se
dissolve na boca? De um caldo
transparente? De uma coxinha de
galinha cremosa e crocante por
fora? As técnicas, os vocábulos sumiram junto com os processos,
com as regras compartilhadas e,
pior de tudo, com o professor. E é
impossível fazer boa comida desvinculada dos elos com o passado.
O livro do chef mostra uma pirâmide de ovos de codorna manchados como tigres, e o bacalhau
transformado em espuma a ser
tomada com canudinho. O principiante estremece. Ele não quer
saber daquilo, não sabe fazer
aquilo, nunca viu aquilo, que fique para o cozinheiro, que é o especialista.
Acontece que o cozinheiro profissional também deixou escapar
sua ligação com o elementar e
com o básico. Os próprios cozinheiros não têm mais o que dividir. Perderam a intuição do real e
se debatem nas redes de suas próprias invenções abstrusas. Passaram a cozinhar pensando nos
guias, nas estrelas, em enormes
quantidades de gente.
A tarefa principal da cozinha
atual é a criação de uma linguagem compartilhada. Sidney
Mintz, cito de memória, diz que
um país só tem uma "cuisine"
quando um grupo de pessoas divide o conhecimento de sua comida e, além de saber prepará-la e
conhecer seu gosto, discute e comenta e critica essa comida. Uma
comida com vida e específica de
uma cultura tem que ser cheia de
lembranças de infância e jeitos especiais de fazer coisas especiais.
Comida vai mais fundo do que a
receita da revista, é uma linguagem que se refaz de pessoa para
pessoa, que se enriquece através
de cada um, coisa viva que expressa nosso meio ambiente.
Na troca, no dividir e copiar, aumentamos e diminuímos os modelos; há os que se perdem para
sempre (os docinhos finos de outrora), outros rareiam (um lombo
de porco com sabor), outros nascem e se multiplicam (sushis),
formando o estoque de onde arrancaremos as receitas novas.
Comida boa é aquela que aceitamos com naturalidade, que cozinhamos com a cabeça livre de
preconceitos e de vergonhas. É
comida sob a perspectiva de nós
próprios e de nosso mundo, mas
sem esquecer o outro que vai nos
confirmar ainda mais quem somos. Cozinhar bem é estar solto,
sem vergonha de mostrar a cara,
fiéis a nós mesmos, ao nosso grupo, à nossa gente.
Resumindo. Você está com fome, vai para a cozinha e faz a receita de um chef famoso no mundo inteiro? Um peito de pombo
defumado, com cuscuz de Israel,
pimentões-sino recheados, avelãs
e vinagrete de chocolate salgado?
Com primeiro andar, segundo
andar e mezanino?
Não faz e nem quer fazer. É mais
ou menos isso aí.
ninahort@uol.com.br
Texto Anterior: Música Erudita: A terceira vida de Camargo Guarnieri Próximo Texto: Dia das Mães: Peixe "caseiro" é opção honesta Índice
|