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CONTARDO CALLIGARIS
Quem vota em Jean-Marie le Pen?
Alguns meses atrás, num
apartamento de Nova York,
esbarrei numa coleção de suvenires. Entre a ponta de uma lança
dos massais do Quênia e uma
marionete tailandesa, havia uma
estatueta de cerâmica representando "o" francês. Era um homem de boina azul, bigode, macacão e baguete em baixo do braço. O homenzinho de cerâmica
reapareceu na semana passada.
Eis como.
Quase um francês em cada cinco votou em Jean-Marie le Pen
para presidente: um candidato
declaradamente xenófobo, racista e neofascista. Nenhuma novidade: a força de seu eleitorado já
era 15% há anos. Desta vez, pela
dispersão das esquerdas e pela
mediocridade das escolhas possíveis, Le Pen cresceu um pouco e
chegou ao segundo turno.
De repente, a imprensa mundial perguntou: quem vota nessa
figura? Os repórteres saíram à caça de bruxas e voltaram perplexos. Certo, existem, no eleitorado
de Le Pen, neonazistas extravagantes, mas a grande maioria dos
que votaram nele têm um rosto
banal como o nosso. (A conclusão
foi igual para os eleitores de candidatos neofascistas em outros
países europeus: Áustria, Bélgica,
Dinamarca etc.).
Numa manifestação, em Paris,
a repórter da CNN procurava descobrir a cara do racismo, da vontade de sair da Europa unida, de
"limpar" etnicamente o país, de
deportar os estrangeiros. Perguntava: "Por que você sustenta Le
Pen?". Resposta: "Porque sou
francês". No meio duma dessas
entrevistas, na tela da TV, apareceram várias cópias do homenzinho de cerâmica: um grupo de
manifestantes desfilava de macacão, boina e baguete para declarar sua "francesice". Afinal, disfarçar-se de si mesmo é um bom
jeito de defender uma identidade
ameaçada. E uma das razões do
voto de quem desfilou para Le
Pen é o medo de perder-se, de não
ser mais si mesmo, o risco de não
ser mais nada.
Não é um medo incomum. Há
um sentimento tipicamente moderno que ultrapassa em muito os
limites do eleitorado dos vários Le
Pen do mundo. Ele joga pontes insuspeitadas entre sujeitos que parecem distantes, política e socialmente, reunindo:
1) os racistas e os patriotas,
2) os insatisfeitos com a algaravia nas ruas de seus bairros, com
os odores de estranhos cozidos
nas escadas do prédio ou com a
música alta no andar de cima,
3) os trabalhadores cujos empregos são ameaçados por imigrantes ou pela fuga das empresas
em busca de mão-de-obra barata,
4) os pequenos comerciantes arruinados pelos shoppings onde
triunfam as franquias internacionais,
5) os que entregam suas casas às
instituições financeiras que lhes
emprestaram dinheiro,
6) os pequenos agricultores esmagados pelo latifúndio da indústria alimentar internacional,
7) os excluídos da tecnologia
eletrônica e digital,
8) em geral, todas as vítimas e
os inimigos de um mundo em que
as comunicações são imediatas,
as viagens são rápidas e as migrações (assim como as misturas),
frequentes e, aparentemente, fáceis.
Quem vota em Le Pen não é
propriamente de direita, pois
abomina o capital internacional
e financeiro. E muitos dos que militam na esquerda vivem, de fato,
as mesmas indignações que o lepenistas.
O denominador comum é uma
espécie de nostalgia de casa à
qual todos somos sensíveis: a nostalgia de um tempo em que o
mundo talvez fosse menor, mais
estável, mais seguro, mais igual a
si mesmo.
Vivo entre dois países, se não
três: quem me lê, mesmo que não
se desloque, participa das viagens.
A presença dessa diversidade nas
nossas vidas é um traço banal da
modernidade. É graças a ela que
nos reconhecemos cada vez mais
como membros da espécie humana, e não só de uma tribo. Mas há
um custo: numa tribo, seria muito mais fácil saber quem somos e
para que viemos ao mundo.
Como os homenzinhos de cerâmica que desfilaram com Le Pen,
eu também sinto falta dum vilarejo onde todos falem a mesma
língua e todos saibam a função de
cada um na comunidade, mesmo
que seja a do louco ou a do vadio.
Se todos soubessem para que sirvo, eu mesmo saberia-o com certeza. Seria um grande alívio.
A globalização expande nossa
tribo até incluir a humanidade
inteira (o que nos parece simpático e desejável), mas, ao mesmo
tempo, ela permite a livre circulação pelo mundo de interesses descomprometidos com o destino
concreto das comunidades e das
pessoas (o que é devastador).
De forma análoga, a resistência
à globalização expressa a vontade
de não abdicar a direção de nossas vidas concretas (o que é desejável), mas expressa também a
nostalgia de uma casa tranquila e
perdida (o que é inevitável) e,
nessa nostalgia, o ódio do estrangeiro que atrapalhou a paz do vilarejo (o que é assustador e compromete o que há de melhor na
globalização).
Os homens de cerâmica que votam em Le Pen lembram que, no
coração de nossa nostalgia, está o
risco de um tribalismo alimentado por caricaturas de nós mesmos.
Resta falar da estatueta de cerâmica no apartamento de Nova
York. Pois a tal nostalgia de casa
é também a força atrás da estética
kitsch que nos é proposta, hoje,
como imagem do conforto no
qual seria bom viver. Mas isso fica
para outra vez.
ccalligari@uol.com.br
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