São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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Argentina concorre à Palma de Ouro com 2º longa

DA REPORTAGEM LOCAL

A estréia na direção de longas-metragens da argentina Lucrecia Martel ("Pântano", 2001) foi saudada pelo Festival de Berlim com o Prêmio Alfred Bauer, concedido aos que "abrem novas perspectivas na arte do cinema".
Seu segundo filme, "La Niña Santa", está na corrida pela Palma de Ouro em Cannes (de 12 a 23/5). De Buenos Aires, por telefone, Martel conversou com a Folha sobre sua carreira no cinema, tão recente e já consolidada. (SA)

Folha - O convite para competir pela Palma de Ouro em Cannes assevera que a sra. consolidou um estilo no cinema?
Lucrecia Martel -
Não consigo enxergar em mim um estilo. O que posso dizer é que, a partir de "Pântano", percebi que há certos temas e uma determinada forma de tratá-los que me interessa.

Folha - Quais são esses temas?
Martel -
Sobretudo o da construção da realidade e o lugar que, nessa construção, o desejo ocupa. A religião me interessa porque é um discurso muito forte na construção da realidade.
Freqüentemente, a realidade não é compreendida como uma construção. As coisas parecem naturais, dadas, inamovíveis, como se as pessoas precisassem se submeter a tudo, passivamente.
Em "Pântano" e "La Niña Santa", eu queria deixar ver que essa realidade é algo possível de ser transformado. Queria mostrar que há certas rupturas que dependem unicamente de nós. Nem tudo precisa ser aceito tragicamente ou tristemente.
Mas essas são preocupações complexas, sobre as quais não é fácil ter um discurso lógico e amarrado. São coisas que se pode abordar de forma indireta, com sutilezas e alusões, muito mais do que com demonstrações.

Folha - Embora a sra. afirme que a realidade é uma construção e não um conjunto de circunstâncias inamovíveis, seu cinema transmite a sensação de opressão. Os personagens parecem estar sempre sufocados em seus mundos.
Martel -
Quero que o espectador tenha a sensação de que a realidade sufoca os personagens, mas que ele sinta também certa felicidade nesses personagens, que perceba sua vitalidade em outros aspectos, como nos pequenos truques que fazem para ser felizes.
A leitura que a crítica fez de "Pântano" desconhece o que há no filme de ambigüidade sexual e de desejo apontado em diferentes direções. Tudo foi visto como sinal de decadência, enquanto, para mim, era signo de vitalidade.

Folha - Vê como um paradoxo que os filmes da mais notória cineasta argentina da atualidade não tenham um caráter nacional?
Martel -
Eu filmo em Salta [a 1.600 km de Buenos Aires], nem sequer em Buenos Aires. Para mim, é vital meu marco social e cultural. Sinceramente, não me sinto de forma alguma tão internacional ou global. Se até agora não pude sair nem da cidade onde nasci... É um estranho paradoxo.

Folha - De que cineastas se sente próxima?
Martel -
Gosto muito da parte mais mística e menos metafórica de Bergman; do humor de Almodóvar, da forma que tem de transgredir o pensamento com esse humor; gosto muitíssimo do cinema de ação de John Woo; e me entusiasma tremendamente o cinema de meus colegas argentinos, como Diego Lerman, Pablo Trapero, Adrián Caetano, Ana Poliak, Martin Rejtman.
Mas sinto que minha maior influência vem da conversação familiar da minha casa, um estilo fundado por minha avó e minha mãe. O humor, a escuridão, tudo o que está em torno dele é minha fonte narrativa número um.

Folha - A sra. disse que necessita filmar em sua cidade-natal. Escrever o roteiro de "La Niña Santa" na França, como bolsista da Cinefondation, entidade de formação profissional mantida pelo Festival de Cannes, e ter o espanhol Pedro Almodóvar como co-produtor mudou algo em sua perspectiva?
Martel -
Descobri que a distância da Argentina não me favorece. Escrevi muito pouco na França. Consegui apenas ordenar o que já havia escrito. Tive de voltar para a Argentina para concluir o roteiro.
Quanto a Almodóvar, sua produtora é muito respeitosa com o cinema. Eles intervieram unicamente nos apoiando, jamais tentando modificar questões narrativas ou de elenco. Sinceramente, foi um luxo trabalhar com eles.


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