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MARCELO COELHO
Tirando os pecados do mundo
Do alto de uma estrutura centralizada, o papa adquire uma presença mais irreal
SOU DOS muitos que não se conformam com o conservadorismo do Vaticano em questões
de sexo, saúde e vida familiar. Condenar o divórcio e o uso de preservativos, para citar casos mais extremos
de intransigência, parece-me não só
uma agressão ao bom senso, mas
quase uma futilidade hoje em dia.
É como se os padres insistissem
em andar de batina pelas ruas, ou fizessem questão de que ninguém coma carne na Semana Santa. Pontos
como esses foram abandonados da
pauta eclesiástica. Por que não flexibilizar um pouco o resto também?
Nestes últimos dias, contudo, fui
mudando de opinião. Pode ser que a
rigidez do papa nessas questões termine até trazendo algum efeito positivo. Pelo menos, a julgar pelo que
acontece no Brasil.
A pesquisa que saiu domingo passado na Folha, sobre as atitudes religiosas da população, mostra como é pequena, afinal, a influência
das doutrinas do Vaticano sobre os
próprios católicos.
Em grande maioria, os católicos
são favoráveis ao divórcio (74%) e
defendem o uso da camisinha
(94%). São mais tolerantes do que
a média da população no que diz
respeito à eutanásia e ao casamento gay. Mesmo numa questão muito mais polêmica como a do aborto,
há 26% de católicos favoráveis à
ampliação dos casos em que a prática deva ser permitida -porcentagem idêntica à do conjunto da população.
Nas questões de fé propriamente
dita, as surpresas da pesquisa também são grandes. Belisco-me para
ver se não estou sonhando, mas os
dados permanecem claros na página do jornal. Só 62% dos católicos
acreditam que existe vida após a
morte, e é ainda menor a porcentagem dos que acreditam no inferno;
44% dos católicos crêem na reencarnação.
Se é assim, não há muito por que
se escandalizar com as homilias do
papa a respeito disso ou daquilo. É
bastante reduzida, na prática, a influência do Vaticano sobre o comportamento e as crenças reais da
população. O peso de uma condenação papal ao sexo antes do casamento ou ao uso da pílula, por mais
que se insista nesses temas, tende a
ser tão grande quanto o ibope dos
programas da Rede Vida em comparação com as novelas da Globo.
Não foi assim com tudo, aliás?
Afinal de contas, a igreja sempre
condenou a avareza, a vaidade, o
apego aos bens terrenos ou o espírito de vingança, enquanto seu vasto rebanho tratava, ao longo dos
séculos, de pecar desvairadamente.
Com culpa, na maioria das vezes.
Talvez seja nesse âmbito indireto
de influência que a Igreja Católica,
como qualquer outra religião, tenha um domínio mais efetivo.
Mesmo assim, à medida que declina a crença no inferno, o poder das
condenações doutrinárias ao sexo
ou ao consumo tende a recalcar-se
em uma gaveta longínqua do inconsciente. O que não significa, por
certo, que todo passado pessoal e
histórico de repressão ao sexo tenha se dissolvido no ar. Medo e culpa nessas questões fazem ainda
parte de nossa cultura, e essas coisas não mudam rapidamente.
É nisso que o conservadorismo
do papa acaba desempenhando um
papel positivo. Sua clamorosa inatualidade serve para atrair, como
um ímã, todas as pequenas aparas
de ferro que ainda nos prendiam a
um mundo de obscurantismo e repressão. Ficam com ele, e não conosco, o absurdo, o medo, o dogma
e a culpa. Ele nos deixa mais leves,
quanto mais pesado o seu passo.
Nesse sentido, o papa funciona
de fato como um vigário de Cristo;
claro que de uma forma paradoxal.
Toma a si os pecados do mundo,
enquanto os condena. É crucificado por seu atraso e dogmatismo,
enquanto nos livra desses males;
sacrifica o próprio bom senso e a
inteligência, insistindo em crenças
inviáveis. Enquanto isso, cada católico, como qualquer outra pessoa, decide mais ou menos por si
mesmo no que é razoável acreditar.
Eis um bom antídoto contra o fanatismo. Uma excessiva proximidade entre a autoridade religiosa e
o modo de vida de cada indivíduo
seria, sem dúvida, mais perigosa.
Pequenos grupos magnetizados
pelo exemplo pessoal de um líder
entram com facilidade em transe e
sinergia. Do alto de uma estrutura
burocrática, centralizada e gigantesca, o papa adquire uma presença menos efetiva, mais simbólica e
irreal.
Por isso mesmo, João Paulo 2º
descobriu que tinha de viajar o
tempo todo. Bento 16 parece obrigado a fazer o mesmo. Pobre homem.
coelhofsp@uol.com.br
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