São Paulo, sábado, 09 de maio de 2009

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O apocalipse segundo Will

Britânico Will Self imagina mundo pós-catástrofe ambiental em seu mais elaborado romance, "O Livro de Dave", em que ironiza as religiões

Philippe Matsas/Agence Opale
O escritor Will Self

RAQUEL COZER
DA REPORTAGEM LOCAL

Prega a Bíblia que não se deve cobiçar a mulher do próximo. Em "O Livro de Dave", a ordem é simplesmente não cobiçar a mulher. Nenhuma delas. Esse é apenas um dos preceitos religiosos que passam a reger a humanidade depois de um colapso da natureza, segundo a imaginação de Will Self, 47, um dos maiores escritores britânicos da atualidade. No romance, que sai agora no Brasil pela Alfaguara, uma Inglaterra pós-catástrofe ambiental aparece quase toda submersa, com habitantes vivendo sob os ensinamentos de Dave Rudman, taxista loser da Londres contemporânea.
Como o personagem passa de motorista a profeta é algo que Self revelará nos detalhes mais espinhosos. Após perder a guarda do filho para a ex-mulher, Dave escreve e enterra um volume com ideias sobre como o mundo deveria ser -homens e mulheres vivendo separados, com guarda de filhos dividida, é um exemplo. Séculos depois, o livro é encontrado na ilha de Ham (que um dia foi Hamsptead) e vira a nova Bíblia.
O romance explicita a visão do autor sobre como a necessidade de uma religião -um "bálsamo metafísico", nas palavras dele- pode fazer as pessoas aceitarem normas "sem sentido". "Não penso que toda religião seja ruim", diz Self à Folha por e-mail, "mas o conteúdo de um livro sagrado é menos importante que a busca do ser humano pela doutrina religiosa".
O escritor ressalta tal falta de fundamentos -e, ao mesmo tempo, o fundamentalismo- alternando capítulos sobre a vida decadente de Dave e o futuro em que ele é celebrado. Ninguém no futuro estranha o fato de o grande profeta ter ideias de um troglodita intratável. "O Deus do Antigo Testamento é uma figura desagradável, eu acho, e certamente alguns dos profetas do Velho Testamento seriam taxistas pavorosos", provoca Self.
O livro também reflete a opinião do autor de que a Terra está à beira de um desastre. "O mundo não tem a menor chance de suportar um crescimento ainda maior da população e, com o aquecimento global, vamos quase certamente experimentar uma catástrofe."

Mortos e macacos
Self, que esteve no Brasil em 2007 e roubou a cena na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) com sua atitude performática e suas frases de efeito, é conhecido por sua obra de difícil leitura e cheia de ironia sobre o que existe (e o que não existe) de mais grotesco.
Seus dois livros já publicados por aqui pela Objetiva/Alfaguara tratam, respectivamente, de uma velha rabugenta que, morta, relembra a vida ao enfrentar intermináveis 12 passos sobre sua nova condição ("Como Vivem os Mortos", 2005) e de um homem que um dia descobre que todo mundo ao seu redor virou macaco ("Grandes Símios", 2006).
Mas "O Livro de Dave" vem sendo considerada a obra mais elaborada do autor. Tão elaborada que, lançada em 2006 e elogiadíssima pela crítica de língua inglesa, recebe só agora sua primeira tradução, justamente para o português. "Meus outros tradutores, todos eles, recusaram-se a traduzir o livro", conta Self. A tarefa, cumprida aqui por Cássio de Arantes Leite, incluía encontrar um paralelo que fosse convincente para o dialeto próprio do mundo pós-apocalíptico de Self -uma espécie de evolução do "cockney", sotaque da classe trabalhadora londrina.
Arantes Leite abriu o caminho -até o final do ano, devem enfim sair traduções na Itália, na Alemanha e na França- e está agora em outra etapa. Ele traduz "The Butt" (a guimba), a mais recente obra do escritor britânico, prevista para sair aqui no ano que vem.

Ballard
Jornalista e articulista, Will Self destacou-se na cena literária inglesa logo nos primeiros livros -em 1993, foi considerado pela revista "Granta" um dos melhores jovens autores locais- e ganhou fama de "enfant terrible" em 1997, ao ser pego usando heroína no avião do primeiro-ministro inglês.
Na época, já era elogiado por escritores como Martin Amis, Salman Rushdie e Doris Lessing, e estreitou amizade com aquele que cita como sua maior influência, J.G. Ballard, autor de "Crash", entre outros.
Deste, morto no último dia 19 de abril, aos 78, em Londres, guarda a lembrança de uma conversa bastante recente. "Ele falava sobre o tempo no hospital: "São lugares horríveis, você chega com uma doença e vai embora com duas!""


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