São Paulo, sexta-feira, 09 de junho de 2000


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"Fios do Tempo" traz compreensão prática de Brook

DA REPORTAGEM LOCAL

Não se deve buscar em "Fios do Tempo" uma autobiografia como as tantas que surgem hoje, com revelações bombásticas, escândalos de bastidores. Nem tampouco, o que seria de esperar de artista tão marcante no século 20 como Peter Brook, dissertações estéticas ou programáticas.
Este é um livro de inflexões estranhas, inesperadas. Os acontecimentos parecem se dar como que por acaso, até por capricho, na longa história do diretor no teatro, que começou há 57 anos.
O encenador anglo-brasileiro Ron Daniels, escrevendo sobre "Fios do Tempo" quando do lançamento na Inglaterra há dois anos, relatou que Brook não gosta de ser chamado de guru ou guia do teatro -o que é a regra, quando se fala dele. Mas ele não merece, realmente, tais qualificações.
Está o tempo todo a duvidar, os seus ensinamentos são simples e práticos demais, afetam ingenuidade -em tom bem mais acentuado do que num livro fundamental como "O Espaço Vazio", de 68.
Em suas "falsas memórias", como chama, quando ele trata de algumas de suas mais conhecidas influências, as reações e predileções se dão por empatia, jamais por identificação de princípios ou idéias. Sobre Artaud, por exemplo, ao falar da criação do grupo que viria a encenar "Marat/Sade":
"Nós chamamos (o grupo) de Teatro da Crueldade, numa homenagem a Antonin Artaud, pois, embora a teoria do teatro nunca me houvesse interessado muito e eu tivesse encontrado nas visões extremas de Artaud muito pouco das especificidades que o trabalho prático requer, eu admirava a impetuosa intensidade das posições de Artaud."
De outro lado, sobre o alemão Brecht: "O que me fascinou não tinha qualquer relação com as suas teorias. Foi o homem, foi o melodrama de encontrar Brecht em segredo, de ter sido proibido pelas autoridades britânicas de falar em público com esse comunista notório. Brecht descreveu-me sua teoria do distanciamento. Ele era articulado e divertido, mas eu não me convenci".
Brook tem menos reservas teóricas quando fala de Grotowski, mas a sua reação é quase sempre a mesma, subjetiva, algo volúvel -o que torna "Fios do Tempo" uma autobiografia reveladora, mas de uma forma bem diferente.
É o que se pode dizer do longo e por vezes incompreensível relato sobre um filósofo místico que foi, pelo que indica o livro, marca perene em sua vida, o russo Gurdjieff.
O diretor conta das sessões de que participou em grupo, por décadas, com Jane Heap, seguidora de Gurdjieff. Um ensinamento:
"O que, em linguagem esotérica, é chamado de "o quarto caminho" não é nem o caminho da mortificação do corpo, nem o da retirada do mundo, nem o da alta investigação intelectual. É um termo que causou todas as gradações de incompreensão e distorção -e que requer uma coisa: a compreensão. Ela não pode ser descoberta na solidão, nem no estudo, mas apenas através de um longo e paciente trabalho com outros, sob as condições quase impossíveis da vida cotidiana."
É uma passagem um pouco exasperante, mas não deixa ser mais uma faceta, talvez a fundamental, a compor candidamente o personagem Peter Brook. Ela ajuda a entender, por exemplo, a importância que dá a pequenas lições, como na única frase que lembra de seus anos de estudo, aliás, uma pergunta, do "senhor Taylor":
"Por que o ritmo é um fator comum a todas as artes?"
"Fios do Tempo" segue por muitos caminhos, encontrando casualidades e pequenas lições em tudo, da primeira experiência com "atores de várias culturas", inspirada pelo título de um festival Teatro das Nações, até seu casamento com Natasha Parry -ele que aos 12, ao ler "Guerra e Paz", jurou casar-se com uma mulher chamada Natasha.
São os tais fios do tempo de que Peter Brook fala, na introdução às "falsas memórias":
"Coloco-me ao lado de Hamlet, quando ele pede uma flauta e protesta contra a tentativa de se perscrutar o mistério de um ser humano, como se fosse possível conhecer todos os seus refúgios e obstáculos. O que tento tecer da melhor forma são os fios que ajudaram a desenvolver a minha própria compreensão prática, na esperança de que, em algum lugar, eles possam contribuir à experiência de uma outra pessoa." (NS)


Livro: Fios do Tempo      Autor: Peter Brook Editora: Bertrand Brasil Quanto: preço não definido (352 págs.)



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