São Paulo, sexta-feira, 09 de junho de 2000


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RECEITAS DO MELLÃO
A poética feijoada do Souza

HAMILTON MELLÃO JR.
COLUNISTA DA FOLHA

São Mateus é contra o comer. Ou, como ele quer, tudo o que entra pela boca do homem é impuro, porque sai de maneira escusa. Já o que vem do coração etc. Pobre santo. Passou por esta vida sem ter experimentado a feijoada do Souza. Faço aqui uma pausa e respiro: conheço o Souza há séculos e até agora não sei o seu prenome.
Acredito que quem acode pelo sobrenome há de ter pudores do ridículo onomástico imposto pelo pai. Mas isso não é de relevância. O que importa é que o Souza faz a melhor feijoada do planeta.
Não posso me furtar de fazer considerações sobre ele, que carrega nos ombros o peso dos seus 60 anos e a glória de nunca ter trabalhado. "Vamos ao jogo que o trabalho é roubo" é seu refrão predileto. Quando soube que a Fanta uva ia sair de linha, comprou o estoque de vários depósitos. E toma até hoje uma garrafa por dia acreditando em seus poderes psicotrópicos.
Uma vez por mês, e sempre no dia 27 (não me perguntem o porquê), convida a mim "et caterva" para o esperado repasto que começa a ser preparado no dia 28 do mês anterior. O feijão tem de vir de Uberaba. Meticulosamente limpo de todas as suas impurezas, é escolhido de acordo com uma sincrética padronagem de modelos e circunferências. Em seguida, os grãos são lustrados, um a um, por macias flanelas e reservados.
A etapa seguinte do Souza é passar pelo menos uma semana perturbando todos os mercados municipais em busca daquela carne-seca de gordura amarelecida, típica das vacas velhas que, segundo ele, é a melhor por conter o sofrimento da alma bovina em longa encarnação.
A língua e o rabo são de bacorinhos ainda imberbes, mortos antes de chafurdarem na lama e de receberem o espírito de porco. Já o lombo, o toucinho, o paio e as linguiças são portugueses mesmo, desviados por um dileto na alfândega de Santos.
Vamos agora ao modus operandi: as carnes salgadas são colocadas, individualmente, em bacias de ágata e cobertas por água mineral de São Roque durante 48 horas. A água, essa sim, deve ser trocada de hora em hora.
Couve, louro e alho são de sua horta, tudo sem "agrotóchico", como ele frisa sempre. A primeira merece cuidado especial: deve ser colhida ainda orvalhada, às 5h da manhã. Depois de lavadas em água corrente, todas as folhas têm suas mínimas ranhuras e nervuras extirpadas com o auxílio de uma gilete, num ritual cirúrgico/ botânico.
Terminada a operação, o Souza diminui o lume do fogão à lenha e coloca o feijão para cozinhar, assim como todos os seus pertences em panelas de barro individualizadas. O tempo de cozimento de cada ingrediente é controlado pela precisão de um cronômetro suíço.
O próximo passo do poeta é sentar e tomar, aos poucos, a sua Fanta uva em busca de eflúvios divinais para a integralização de tão vultosa obra.
Findo o último gole, eructa e parte para o grande finale: feijão, azeite, louro, couve, alho e uma mistura de pimentas que nunca ninguém viu e que deve ser a pedra filosofal do acepipe. Agrega agora os pertences com carinho e deixa no lume por um infinito.
Os neófitos, pouco afeitos às usanças da casa, que clamam pela farinha, arroz, laranja e mandioca, são ignorados totalmente. Agora, depois do platônico banquete, ajambramo-nos nas redes distribuídas e só nos resta ruminar sobre a brevidade da vida.
E-mail - mellao@uol.com.br


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