|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RECEITAS DO MELLÃO
A poética feijoada do Souza
HAMILTON MELLÃO JR.
COLUNISTA DA FOLHA
São Mateus é contra o comer. Ou, como ele quer, tudo
o que entra pela boca do homem é
impuro, porque sai de maneira
escusa. Já o que vem do coração
etc. Pobre santo. Passou por esta
vida sem ter experimentado a feijoada do Souza. Faço aqui uma
pausa e respiro: conheço o Souza
há séculos e até agora não sei o seu
prenome.
Acredito que quem acode pelo
sobrenome há de ter pudores do
ridículo onomástico imposto pelo
pai. Mas isso não é de relevância.
O que importa é que o Souza faz a
melhor feijoada do planeta.
Não posso me furtar de fazer
considerações sobre ele, que carrega nos ombros o peso dos seus
60 anos e a glória de nunca ter trabalhado. "Vamos ao jogo que o
trabalho é roubo" é seu refrão
predileto. Quando soube que a
Fanta uva ia sair de linha, comprou o estoque de vários depósitos. E toma até hoje uma garrafa
por dia acreditando em seus poderes psicotrópicos.
Uma vez por mês, e sempre no
dia 27 (não me perguntem o porquê), convida a mim "et caterva"
para o esperado repasto que começa a ser preparado no dia 28 do
mês anterior. O feijão tem de vir
de Uberaba. Meticulosamente
limpo de todas as suas impurezas,
é escolhido de acordo com uma
sincrética padronagem de modelos e circunferências. Em seguida,
os grãos são lustrados, um a um,
por macias flanelas e reservados.
A etapa seguinte do Souza é passar pelo menos uma semana perturbando todos os mercados municipais em busca daquela carne-seca de gordura amarelecida, típica das vacas velhas que, segundo
ele, é a melhor por conter o sofrimento da alma bovina em longa
encarnação.
A língua e o rabo são de bacorinhos ainda imberbes, mortos antes de chafurdarem na lama e de
receberem o espírito de porco. Já
o lombo, o toucinho, o paio e as
linguiças são portugueses mesmo, desviados por um dileto na
alfândega de Santos.
Vamos agora ao modus operandi: as carnes salgadas são colocadas, individualmente, em bacias
de ágata e cobertas por água mineral de São Roque durante 48
horas. A água, essa sim, deve ser
trocada de hora em hora.
Couve, louro e alho são de sua
horta, tudo sem "agrotóchico",
como ele frisa sempre. A primeira
merece cuidado especial: deve ser
colhida ainda orvalhada, às 5h da
manhã. Depois de lavadas em
água corrente, todas as folhas têm
suas mínimas ranhuras e nervuras extirpadas com o auxílio de
uma gilete, num ritual cirúrgico/
botânico.
Terminada a operação, o Souza
diminui o lume do fogão à lenha e
coloca o feijão para cozinhar, assim como todos os seus pertences
em panelas de barro individualizadas. O tempo de cozimento de
cada ingrediente é controlado pela precisão de um cronômetro
suíço.
O próximo passo do poeta é
sentar e tomar, aos poucos, a sua
Fanta uva em busca de eflúvios divinais para a integralização de tão
vultosa obra.
Findo o último gole, eructa e
parte para o grande finale: feijão,
azeite, louro, couve, alho e uma
mistura de pimentas que nunca
ninguém viu e que deve ser a pedra filosofal do acepipe. Agrega
agora os pertences com carinho e
deixa no lume por um infinito.
Os neófitos, pouco afeitos às
usanças da casa, que clamam pela
farinha, arroz, laranja e mandioca, são ignorados totalmente.
Agora, depois do platônico banquete, ajambramo-nos nas redes
distribuídas e só nos resta ruminar sobre a brevidade da vida.
E-mail - mellao@uol.com.br
Texto Anterior: Mundo Gourmet - Josimar Melo: Cenário valoriza pratos do aprazível Empório Vila Itaim Próximo Texto: Panorâmica: Piano Forte reduz 30% dos preços Índice
|