São Paulo, sábado, 09 de junho de 2001

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"CHEGA DE SAUDADE"

A implosão sonora de João Gilberto

JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

No final do ano de 1958, ainda jovem, acompanhei meus pais numa viagem que fizeram à cidade de Franca. Circulando pelas ruas, ouvi numa loja de discos uma estranha voz de cantor que, apesar de despojada e inteiramente desvinculada da musicalidade popular da época, esta repleta da verborragia melodolorosa do abolerado ninguém-me-ama/ niguem-me-quer, exercia sobre mim fascínio fora do comum. Permaneci estático por alguns momentos e em seguida comprei a bolacha de 78 rotações com a música "Chega de Saudade".
O desconhecido cantor-anticantor era João Gilberto. Ao voltar a São Paulo, comecei a procurar amigos com o disco debaixo do braço e me dei conta que impactos semelhantes ocorreram, como um feitiço, com pessoas de diversos círculos artísticos.
Os poetas concretistas, que trabalhavam num projeto literário radical e hermético, criando poemas com pinça e lupa, alguns deles com uma única palavra, identificavam-se com aquela sutil música de câmara popular e até discorriam sobre ela em longos artigos. No fechado círculo dos pintores concretistas, igualmente rigorosos em suas formas geométricas e teorias, criavam-se analogias entre seus trabalhos e aquele despojamento interpretativo.
Os músicos eruditos da vanguarda, às voltas com o recém-revivido dodecafonismo, desciam de seus pedestais e comparavam seus desafiadores projetos de "atomozação" e filtragem do som àquela linguagem musical coloquial, àqueles arranjos cristalinos e harmonias corajosas. Os amantes das tradições brasileiras viam em João a versão moderna do canto falado de Noel, a delicadeza expressiva de um Mario Reis e a impostação vocal espontânea e fluente de um Orlando Silva dos anos 30, o maior cantor brasileiro de todos os tempos. Até o grande Niemeyer, cujas linhas arquitetônicas caracterizavam-se pela simplicidade e economia de formas, abandonava a prancheta e ia trabalhar em projetos cenográficos ao lado de Jobim.
Os cultores da mais ousada e sofisticada cultura popular do século, o jazz, vibravam com o novo estilo -a bossa nova-, já que em diversos aspectos ele lembrava a vanguarda daquela música no momento, o cool jazz. O trompete frágil de Miles Davis atuava na mesma frequência do murmúrio vocal de João, e os revolucionários e transparentes arranjos de Gil Evans lembravam os de Jobim. Aliás, a propósito de Jobim, considerado por Ella Fitzgerald e Stan Getz como o maior melodista da segunda metade do século 20, teve seu projeto musical substancialmente influenciado pelo "estilo" João Gilberto. É só ouvir os arranjos de Tom anteriores ao LP "Chega de Saudade".
No antológico LP "Canção do Amor Demais", com Elizeth Cardoso, nota-se a velha tradição orquestral das rádios e o manuseio sinfônico típico dos arranjadores americanos convencionais como Kostelanetz, Mantovani ou Melachrino. Em "Chega de Saudade" e no seguinte "Canção do Amor Demais", as toneladas sonoras são substituídas pela sutileza -por frases curtas, pelo emprego supereconômico de efeitos instrumentais.
E, se a música norte-americana nos forneceu um sem-número de elementos estruturais via jazz, eles foram aqui reprocessados e devolvidos em forma de bossa nova. É bom que se diga que, enquanto as outras músicas latino-americanas entraram no mercado americano como fundo musical de festinhas de aniversário ou formatura, como "recuerdos" exóticos dos mares do sul, nossa música ali penetrou através de sua elite musical, dos mais refinados e modernos músicos de jazz. Posteriormente é que ela foi popularizada através do maior cantor pop do século, Frank Sinatra.
Pessoalmente tive oportunidade de conhecer o prestígio de João nos Estados Unidos. Em meados de 60, regendo no festival de Tanglewood, promovido pela Sinfônica de Boston, uma das quatro "grandes" americanas, liguei para João em Nova York e o convidei para vir assistir ao meu concerto. Foi só correr a notícia que ele estaria na cidade, mais metade da orquestra me procurou e pediu, encarecidamente, que o levasse a um local agradável que tinham encontrado. Lá os músicos permaneceriam discretamente nas proximidades, na esperança de que João viesse a cantarolar e dedilhar informalmente o violão.
Chegaram, inclusive, a angariar uma boa quantia em dinheiro para oferecê-lo posteriormente, como uma espécie de cachê simbólico. Essa era a consideração que o país de 2.000 sinfônicas profissionais, 50 mil amadoras e 10 milhões de músicos sindicalizados tem pelo nosso "Baiano-Bossa-Nova". Entendi, também, por que a revista "Down Beat", a bíblia do jazz, chegou a afirmar que há 40 anos nenhum outro músico havia influenciado tanto a música americana como o tinha feito o hoje setentão João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira.


Júlio Medaglia é maestro



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