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"CHEGA DE SAUDADE"
A implosão sonora de João Gilberto
JÚLIO MEDAGLIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
No final do ano de 1958, ainda jovem, acompanhei meus
pais numa viagem que fizeram à
cidade de Franca. Circulando pelas ruas, ouvi numa loja de discos
uma estranha voz de cantor que,
apesar de despojada e inteiramente desvinculada da musicalidade popular da época, esta repleta da verborragia melodolorosa
do abolerado ninguém-me-ama/
niguem-me-quer, exercia sobre
mim fascínio fora do comum.
Permaneci estático por alguns
momentos e em seguida comprei
a bolacha de 78 rotações com a
música "Chega de Saudade".
O desconhecido cantor-anticantor era João Gilberto. Ao voltar a São Paulo, comecei a procurar amigos com o disco debaixo
do braço e me dei conta que impactos semelhantes ocorreram,
como um feitiço, com pessoas de
diversos círculos artísticos.
Os poetas concretistas, que trabalhavam num projeto literário
radical e hermético, criando poemas com pinça e lupa, alguns deles com uma única palavra, identificavam-se com aquela sutil música de câmara popular e até discorriam sobre ela em longos artigos. No fechado círculo dos pintores concretistas, igualmente rigorosos em suas formas geométricas e teorias, criavam-se analogias entre seus trabalhos e aquele
despojamento interpretativo.
Os músicos eruditos da vanguarda, às voltas com o recém-revivido dodecafonismo, desciam
de seus pedestais e comparavam
seus desafiadores projetos de
"atomozação" e filtragem do som
àquela linguagem musical coloquial, àqueles arranjos cristalinos
e harmonias corajosas. Os amantes das tradições brasileiras viam
em João a versão moderna do
canto falado de Noel, a delicadeza
expressiva de um Mario Reis e a
impostação vocal espontânea e
fluente de um Orlando Silva dos
anos 30, o maior cantor brasileiro
de todos os tempos. Até o grande
Niemeyer, cujas linhas arquitetônicas caracterizavam-se pela simplicidade e economia de formas,
abandonava a prancheta e ia trabalhar em projetos cenográficos
ao lado de Jobim.
Os cultores da mais ousada e sofisticada cultura popular do século, o jazz, vibravam com o novo
estilo -a bossa nova-, já que
em diversos aspectos ele lembrava a vanguarda daquela música
no momento, o cool jazz. O trompete frágil de Miles Davis atuava
na mesma frequência do murmúrio vocal de João, e os revolucionários e transparentes arranjos de
Gil Evans lembravam os de Jobim. Aliás, a propósito de Jobim,
considerado por Ella Fitzgerald e
Stan Getz como o maior melodista da segunda metade do século
20, teve seu projeto musical substancialmente influenciado pelo
"estilo" João Gilberto. É só ouvir
os arranjos de Tom anteriores ao
LP "Chega de Saudade".
No antológico LP "Canção do
Amor Demais", com Elizeth Cardoso, nota-se a velha tradição orquestral das rádios e o manuseio
sinfônico típico dos arranjadores
americanos convencionais como
Kostelanetz, Mantovani ou Melachrino. Em "Chega de Saudade"
e no seguinte "Canção do Amor
Demais", as toneladas sonoras
são substituídas pela sutileza
-por frases curtas, pelo emprego
supereconômico de efeitos instrumentais.
E, se a música norte-americana
nos forneceu um sem-número de
elementos estruturais via jazz, eles
foram aqui reprocessados e devolvidos em forma de bossa nova.
É bom que se diga que, enquanto
as outras músicas latino-americanas entraram no mercado americano como fundo musical de festinhas de aniversário ou formatura, como "recuerdos" exóticos
dos mares do sul, nossa música ali
penetrou através de sua elite musical, dos mais refinados e modernos músicos de jazz. Posteriormente é que ela foi popularizada
através do maior cantor pop do
século, Frank Sinatra.
Pessoalmente tive oportunidade de conhecer o prestígio de João
nos Estados Unidos. Em meados
de 60, regendo no festival de Tanglewood, promovido pela Sinfônica de Boston, uma das quatro
"grandes" americanas, liguei para
João em Nova York e o convidei
para vir assistir ao meu concerto.
Foi só correr a notícia que ele estaria na cidade, mais metade da orquestra me procurou e pediu, encarecidamente, que o levasse a
um local agradável que tinham
encontrado. Lá os músicos permaneceriam discretamente nas
proximidades, na esperança de
que João viesse a cantarolar e dedilhar informalmente o violão.
Chegaram, inclusive, a angariar
uma boa quantia em dinheiro para oferecê-lo posteriormente, como uma espécie de cachê simbólico. Essa era a consideração que o
país de 2.000 sinfônicas profissionais, 50 mil amadoras e 10 milhões de músicos sindicalizados
tem pelo nosso "Baiano-Bossa-Nova". Entendi, também, por que
a revista "Down Beat", a bíblia do
jazz, chegou a afirmar que há 40
anos nenhum outro músico havia
influenciado tanto a música americana como o tinha feito o hoje
setentão João Gilberto do Prado
Pereira de Oliveira.
Júlio Medaglia é maestro
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