São Paulo, quarta-feira, 09 de junho de 2004

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MARCELO COELHO

O mundo das jabuticabas

Em dezembro de 1950, a pintora Tarsila do Amaral estava organizando uma grande retrospectiva de sua obra. Tinha também de cuidar da fazenda, perto de Jundiaí. Não sobrava dinheiro. Ela pensa em vender alguns quadros de Léger e Delaunay, que sobravam dos bons tempos, anteriores à crise de 1929. Enquanto isso, calcula quanto rendem as cestas de jabuticaba que os empregados colheram do pomar.
Tarsila estava separada de Oswald de Andrade havia mais de 20 anos. Vivia com o escritor e crítico de arte Luís Martins, bem mais moço do que ela. O Museu de Arte Moderna de São Paulo organizava para Tarsila uma recepção triunfal. Entrevistas, homenagens, coquetéis se sucediam.
Luís Martins, entretanto, tinha viajado sozinho para a Europa. As mensagens de Tarsila para ele são meio esquisitas: "Passei desde o dia 1º bastante aborrecida, pensando em coisas desagradáveis para o futuro em conseqüência de sua estada em Paris...". Ela tinha 64 anos; Luís Martins, 43. "Aí vai meu coração, cheio de saudades", escrevia Tarsila no final de suas cartas.
"Aí Vai Meu Coração" (editora Planeta) é o nome do livro organizado pela filha de Luís Martins, Ana Luísa, reunindo algumas dezenas de cartas recebidas por seu pai. Não sabemos o que ele respondia: suas cartas foram destruídas. Mas podemos acompanhar, nas páginas desse livro muito bem ilustrado com fotos e desenhos de Tarsila, uma forte, quase inacreditável história de amor. Está entre as indicações de uma livraria para o Dia dos Namorados; não faço a propaganda, porque tenho parentesco com a autora do livro; mas não quero deixar de contar o resto da história.
A crise entre Luís Martins e Tarsila aconteceria só no ano seguinte, 1951, e não teve nada a ver com a viagem a Paris. Luís apaixona-se pela jovem Anna Maria, uma prima da pintora. Anna Maria tinha uns 20 anos.
O namoro tem lances de folhetim. Os apaixonados sabem dos riscos de escândalo na família; concebem um plano. Anna Maria deverá fugir de casa; iria encontrar-se com Luís num navio, partindo de Santos com destino a Salvador. Lá, estava tudo arranjado para um casamento secreto. Só que...
Eis o que Anna Maria escreve, em carta a Luís: "Até a véspera de nosso embarque, eu estava firme, certíssima de tudo, mas muito nervosa e deprimida (...) na hora do almoço tive um descontrole enorme, uma crise de choro, cuja razão naquele momento consegui ocultar. Passei o resto do dia triste e em silêncio. À noite, nova crise. Dessa vez, minhas forças esgotadas, não consegui esconder o motivo".
Conta tudo aos pais. "Mamãe teve um disparo de coração", escreve Anna Maria, "que só à custa de coramina cedeu". Luís ficaria esperando inutilmente no navio. E Tarsila?
Tarsila via a repetição de um antigo pesadelo. Oswald de Andrade a abandonara, em 1929, ao apaixonar-se por uma jovem de 18 anos, Pagu. Agora, o mesmo acontecia com Luís Martins.
Seguem-se os lances mais bonitos do livro. Tarsila sofre muito, mas suas cartas para Luís Martins são de uma generosidade a toda prova. "Pelo amor de Deus", diz ela ao marido que a abandona, "me escreva derramando sobre o coração todo o seu sofrimento!"
Ao mesmo tempo melodramático e contido, o apelo está reproduzido no livro com a própria caligrafia de Tarsila. A pintora também dá conselhos à rival: que não sacrificasse a própria felicidade apenas para obedecer aos pais. Mais tarde, quando Luís e Anna Maria já estão finalmente juntos, Tarsila intercederá junto à família, atestando o bom caráter e a honestidade do ex-marido. "Sou sua grande e incondicional amiga", diz Tarsila a Luís Martins. "Nada peço para mim." No auge da crise, Anna Maria e Tarsila se amparavam mutuamente.
Uma história quase inacreditável, como eu disse; mas a linguagem das cartas -simples e direta, em meio à turbulência dos acontecimentos- convence mais do que qualquer narrativa biográfica. Mesmo palavras duras e pungentes vêm cercadas de certa elegância à moda antiga, num misto de compostura e desalinho.
Habituamo-nos a considerar sinceros os sentimentos mais descontrolados e tendemos a esperar de artistas o máximo de fúria e de paixão. O que cada pessoa de fato sente, o que pensa sentir, o que confessa a si mesmo dos seus sentimentos -tudo isso é sempre um mistério. O que fazer dos sentimentos, entretanto, é uma questão de sabedoria. Nem sempre podemos atingi-la; o livro de Ana Luísa Martins talvez mostre um jeito.
Em "Tarsila por Tarsila" (editora Celebris), a sobrinha-neta da artista se concentra nas primeiras fases da sua carreira, com estupenda iconografia. O livro narra outro episódio com Luís Martins e Tarsila, ocorrido em 1938, durante uma temporada na fazenda.
"Por volta das cinco horas da manhã, chegaram quatro homens da polícia com ordem de prisão para Luís. Muito assustado, Luís tentava esclarecer o engano, enquanto Tarsila se vestia. Quando ela chegou à sala, convidou os policiais para tomar um café. Depois de servir um substancioso café da manhã e conversar com eles, convidou-os para um passeio no pomar, a fim de chupar jabuticabas. "Mas que jabuticabas, nunca vi iguais!", exclamavam os policiais. A diplomacia e a calma de Tarsila ajudaram a arrefecer os ânimos e a esclarecer o engano."
Havia torturas bárbaras durante o Estado Novo, como no regime de 64 e atualmente. Já o mundo das jabuticabas da fazenda é tanto o mundo de Sérgio Buarque de Holanda, com seus homens (e mulheres) cordiais, como também o de Monteiro Lobato e do Sítio do Pica-Pau Amarelo; sem contar, claro, o das paisagens "Pau-Brasil" da própria Tarsila. Mundo imaginário, talvez; fundado em certa auto-imagem de classe, certamente; mas capaz de influenciar vidas, comportamentos e paixões reais.


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