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MARCELO COELHO
O mundo das jabuticabas
Em dezembro de 1950, a pintora Tarsila do Amaral estava
organizando uma grande retrospectiva de sua obra. Tinha também de cuidar da fazenda, perto
de Jundiaí. Não sobrava dinheiro.
Ela pensa em vender alguns quadros de Léger e Delaunay, que sobravam dos bons tempos, anteriores à crise de 1929. Enquanto isso,
calcula quanto rendem as cestas
de jabuticaba que os empregados
colheram do pomar.
Tarsila estava separada de Oswald de Andrade havia mais de
20 anos. Vivia com o escritor e crítico de arte Luís Martins, bem
mais moço do que ela. O Museu
de Arte Moderna de São Paulo organizava para Tarsila uma recepção triunfal. Entrevistas, homenagens, coquetéis se sucediam.
Luís Martins, entretanto, tinha
viajado sozinho para a Europa.
As mensagens de Tarsila para ele
são meio esquisitas: "Passei desde
o dia 1º bastante aborrecida, pensando em coisas desagradáveis
para o futuro em conseqüência de
sua estada em Paris...". Ela tinha
64 anos; Luís Martins, 43. "Aí vai
meu coração, cheio de saudades",
escrevia Tarsila no final de suas
cartas.
"Aí Vai Meu Coração" (editora
Planeta) é o nome do livro organizado pela filha de Luís Martins,
Ana Luísa, reunindo algumas dezenas de cartas recebidas por seu
pai. Não sabemos o que ele respondia: suas cartas foram destruídas. Mas podemos acompanhar, nas páginas desse livro
muito bem ilustrado com fotos e
desenhos de Tarsila, uma forte,
quase inacreditável história de
amor. Está entre as indicações de
uma livraria para o Dia dos Namorados; não faço a propaganda,
porque tenho parentesco com a
autora do livro; mas não quero
deixar de contar o resto da história.
A crise entre Luís Martins e Tarsila aconteceria só no ano seguinte, 1951, e não teve nada a ver com
a viagem a Paris. Luís apaixona-se pela jovem Anna Maria, uma
prima da pintora. Anna Maria tinha uns 20 anos.
O namoro tem lances de folhetim. Os apaixonados sabem dos
riscos de escândalo na família;
concebem um plano. Anna Maria
deverá fugir de casa; iria encontrar-se com Luís num navio, partindo de Santos com destino a
Salvador. Lá, estava tudo arranjado para um casamento secreto.
Só que...
Eis o que Anna Maria escreve,
em carta a Luís: "Até a véspera de
nosso embarque, eu estava firme,
certíssima de tudo, mas muito
nervosa e deprimida (...) na hora
do almoço tive um descontrole
enorme, uma crise de choro, cuja
razão naquele momento consegui
ocultar. Passei o resto do dia triste
e em silêncio. À noite, nova crise.
Dessa vez, minhas forças esgotadas, não consegui esconder o motivo".
Conta tudo aos pais. "Mamãe
teve um disparo de coração", escreve Anna Maria, "que só à custa de coramina cedeu". Luís ficaria esperando inutilmente no navio. E Tarsila?
Tarsila via a repetição de um
antigo pesadelo. Oswald de Andrade a abandonara, em 1929, ao
apaixonar-se por uma jovem de
18 anos, Pagu. Agora, o mesmo
acontecia com Luís Martins.
Seguem-se os lances mais bonitos do livro. Tarsila sofre muito,
mas suas cartas para Luís Martins são de uma generosidade a
toda prova. "Pelo amor de Deus",
diz ela ao marido que a abandona, "me escreva derramando sobre o coração todo o seu sofrimento!"
Ao mesmo tempo melodramático e contido, o apelo está reproduzido no livro com a própria caligrafia de Tarsila. A pintora também dá conselhos à rival: que não
sacrificasse a própria felicidade
apenas para obedecer aos pais.
Mais tarde, quando Luís e Anna
Maria já estão finalmente juntos,
Tarsila intercederá junto à família, atestando o bom caráter e a
honestidade do ex-marido. "Sou
sua grande e incondicional amiga", diz Tarsila a Luís Martins.
"Nada peço para mim." No auge
da crise, Anna Maria e Tarsila se
amparavam mutuamente.
Uma história quase inacreditável, como eu disse; mas a linguagem das cartas -simples e direta,
em meio à turbulência dos acontecimentos- convence mais do
que qualquer narrativa biográfica. Mesmo palavras duras e pungentes vêm cercadas de certa elegância à moda antiga, num misto
de compostura e desalinho.
Habituamo-nos a considerar
sinceros os sentimentos mais descontrolados e tendemos a esperar
de artistas o máximo de fúria e de
paixão. O que cada pessoa de fato
sente, o que pensa sentir, o que
confessa a si mesmo dos seus sentimentos -tudo isso é sempre um
mistério. O que fazer dos sentimentos, entretanto, é uma questão de sabedoria. Nem sempre podemos atingi-la; o livro de Ana
Luísa Martins talvez mostre um
jeito.
Em "Tarsila por Tarsila" (editora Celebris), a sobrinha-neta da
artista se concentra nas primeiras
fases da sua carreira, com estupenda iconografia. O livro narra
outro episódio com Luís Martins e
Tarsila, ocorrido em 1938, durante uma temporada na fazenda.
"Por volta das cinco horas da
manhã, chegaram quatro homens da polícia com ordem de
prisão para Luís. Muito assustado, Luís tentava esclarecer o engano, enquanto Tarsila se vestia.
Quando ela chegou à sala, convidou os policiais para tomar um
café. Depois de servir um substancioso café da manhã e conversar
com eles, convidou-os para um
passeio no pomar, a fim de chupar jabuticabas. "Mas que jabuticabas, nunca vi iguais!", exclamavam os policiais. A diplomacia e a
calma de Tarsila ajudaram a arrefecer os ânimos e a esclarecer o
engano."
Havia torturas bárbaras durante o Estado Novo, como no regime
de 64 e atualmente. Já o mundo
das jabuticabas da fazenda é tanto o mundo de Sérgio Buarque de
Holanda, com seus homens (e
mulheres) cordiais, como também o de Monteiro Lobato e do
Sítio do Pica-Pau Amarelo; sem
contar, claro, o das paisagens
"Pau-Brasil" da própria Tarsila.
Mundo imaginário, talvez; fundado em certa auto-imagem de
classe, certamente; mas capaz de
influenciar vidas, comportamentos e paixões reais.
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