São Paulo, sexta-feira, 09 de junho de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Um governo em banho-maria

Uma vez no poder, Dutra descumpriu promessas e atirou o PCB na clandestinidade

PESSOALMENTE HONRADO , o presidente Eurico Gaspar Dutra, ex-ministro da Guerra que fora o condestável do regime ditatorial de Vargas, pautou-se dentro de uma legalidade estrita e mesquinha durante todo o seu governo. Teve -como quase todos os presidentes de nações politicamente instáveis- algumas oportunidades para perpetuar-se no poder, mas não se empenhou ou não soube manobrar nesse sentido. Tampouco tivera habilidade para, na hora precisa, fazer o seu sucessor.
Desceu a escada principal do Palácio do Catete e foi esperar Getúlio Vargas, seu sucessor, na porta que dava para a empoeirada rua do Catete. Aqueles mesmos homens que o destino e a política juntaram, destino e política haviam separado. Agora estavam novamente juntos, numa cerimônia até certo ponto ridícula, pois marcava um rodízio de velhas raposas do cenário nacional.
Dutra devia sua eleição ao ditador a quem servira durante tantos anos e fora por ele servido.
Sem nenhum charme eleitoral, sua candidatura era considerada difícil, pesada, assim mesmo fora eleito. Governara sem um estilo, sem um programa, sem uma idéia. Como militar por gosto e carreira, habituara-se à devoção dos regulamentos e, em sua cabeça, o regulamento que substituía os códigos da caserna era agora a Constituição -a de 1946-, que ele simploriamente chamava de "livrinho". Sempre o consultava antes de tomar uma decisão ou iniciar algum projeto administrativo ou político. Ponto a favor dele.
Uma vez no poder, descumprira as principais promessas da campanha eleitoral. Uma delas: a que daria autonomia ao antigo Distrito Federal, velha e justa aspiração dos políticos cariocas, prometida em praça pública e negada no Palácio do Catete. A atitude de Dutra chocou o eleitorado do Rio, escandalizou aqueles que acreditavam em sua palavra e deixou dois homens sem emprego: os vereadores Carlos Lacerda e Adauto Lúcio Cardoso. Ambos haviam se comprometido a renunciar aos respectivos mandatos, caso a Lei Orgânica do Distrito Federal, elaborada no Senado, mas inspirada por Dutra, negasse (como negou) ampla autonomia política e administrativa à então capital da República.
Outra atitude do governo, que o tornou impopular e alvo de censuras gerais, foi o fechamento do Partido Comunista Brasileiro e o conseqüente -ou inconseqüente- rompimento de relações diplomáticas e comerciais com a União Soviética. Durante a campanha eleitoral, Dutra chegara a namorar os votos dos comunistas, embora houvesse na arena um candidato oficialmente lançado pelo PCB.
Carta de Dutra, datada de 17 de abril de 1945 (início da campanha eleitoral) e publicada em "O Globo" de 19 de abril e no "Correio da Manhã" de 22 do mesmo mês e ano:
"A minha posição em face do comunismo é a única que julgo lícita a qualquer homem com responsabilidade na vida pública nacional: reconheço-lhe o pleno direito de existência legal. Que se organize, que viva como qualquer outro partido, disputando eleitoralmente a sua supremacia e procure, por meio de seus representantes, influir na vida administrativa e política do país".
Ninguém conseguiu apurar quantos votos de indecisos comunistas o então candidato Eurico Gaspar Dutra conseguiu obter com essas declarações liberais. É possível que nenhum. Mas, para um homem que em plena ditadura fora chamada de "Varão de Plutarco" pelo sr. Viriato Vargas, a frase estrategicamente divulgada durante a campanha não poderia representar uma simples e primária arapuca eleitoral.
No entanto, tão logo empossado, ele foi impotente para deter as pressões recebidas e é bom que se diga: tais pressões não somente encontraram solo fecundo para frutificar como também recebiam ajuda pessoal do próprio presidente. Através de manobra judicial, o governo conseguiu cancelar o registro do Partido Comunista Brasileiro, atirando-o na clandestinidade. Dezenas de parlamentares em todo o Brasil foram cassados e, logo após, caçados. O Brasil rompeu relações com a União Soviética, numa agressão pueril que se revelou mais ridícula que eficaz. Governos seguintes trataram de corrigir essa atitude, e o próprio governo que se instalou em 1964, apesar de seu caráter ostensivamente anticomunista, não chegou ao exagero de repetir o mesmo erro.
No setor administrativo, o honrado general limitou-se a uma rotina burocrática. O Brasil limitou-se a crescer vegetativamente, e somente à noite, enquanto todos dormiam. Durante o dia, os governantes atrapalhavam.


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