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DRAUZIO VARELLA
A força do pensamento
A montanha ir até Maomé é tão improvável quanto o Everest surgir na minha janela
EM 40 anos, nunca vi alguém se
curar com a força do pensamento. Cometi a asneira de
pronunciar essa frase numa entrevista e enfrentei a ira dos que pensam de maneira oposta.
A palavra ira, neste contexto, deve
ser levada ao pé da letra. Entre os revoltados, não faltou quem me chamasse de organicista, incrédulo,
prepotente, defensor de interesses
corporativistas e até de imbecil.
Dada a riqueza dos adjetivos a
mim dedicados, vou explicar o que
penso a respeito desse tema.
Antes de tudo, deixo claro que não
estou em desacordo com a metáfora
bíblica de que a fé remove montanhas. Não faltam exemplos de pessoas em situações adversas que, por
meio da força de vontade e do empenho em busca de um ideal, realizaram proezas inimagináveis. Concordo, também, que a vontade de viver é
de importância decisiva na luta pela
sobrevivência. Sem ela, sequer levantamos da cama pela manhã.
Nos anos 1970, tive um paciente
recém-casado, portador de câncer
de testículo disseminado nos pulmões. Haviam acabado de lançar a
cisplatina, nos EUA, quimioterápico
que revolucionaria o tratamento
desse tipo de tumor. Com dificuldade extrema, o rapaz conseguiu dinheiro para a passagem e bateu na
porta do Memorial Hospital de Nova York, sozinho, sem falar inglês,
com 200 dólares no bolso para custear estadia e um tratamento que
não sairia por menos de 20 mil.
Voltou para o Brasil três meses
mais tarde, curado. Poderíamos dizer que outro em seu lugar, sem a
mesma determinação, estaria vivo
até hoje? Lógico que não. A fé pode
remover montanhas, como reza a
metáfora.
Mas, aqui se insere a questão do
tal pensamento positivo. Os que se
revoltaram por ocasião da entrevista, baseiam-se em exemplos como
esse para defender a teoria de que
eflúvios cerebrais benfazejos têm o
dom de curar enfermidades.
E é nesse ponto que nossas convicções se tornam inconciliáveis.
Para mim, se Maomé não for à montanha, a montanha vir a Maomé é
tão improvável quanto o Everest
aparecer na janela da minha casa.
Insisti com o rapaz para se tratar
em Nova York, porque não havia
nem há um só caso descrito na literatura de desaparecimento espontâneo de metástases pulmonares de
câncer de testículo. Todos os que
morreram da doença antes do advento da quimioterapia seriam homens pulsilânimes, desprovidos do
desejo de viver demonstrado por
meu paciente, portanto ineptos para
subjugar suas metástases às custas
da positividade do pensamento?
A fé nas propriedades curativas da
assim chamada energia mental tem
raízes seculares. Quantos católicos
foram canonizados porque lhes foi
atribuído o poder espiritual de curar
cegueiras, paraplegias, hanseníase e
até esterilidade feminina? Quantos
pastores evangélicos convencem
milhões de fiéis a pagar-lhes os dízimos ao realizar façanhas semelhantes diante das câmeras de TV?
Por que a energia emanada do
pensamento positivo serve apenas
para curar doenças, jamais para fazer um carro andar dez metros ou
um avião levantar vôo sem combustível?
Esse tipo de crendice não me incomodaria se não tivesse um lado perverso: o de atribuir ao doente a culpa
duplicada por haver contraído uma
doença incurável e por ser incapaz
de curá-la depois de tê-la adquirido.
Responsabilizar enfermos pelos
males que os afligem vai muito além
de fazê-lo nos casos de câncer de
pulmão em fumantes ou de infartos
do miocárdio em obesos sedentários.
No passado, a hanseníase foi considerada apanágio dos ímpios; a tuberculose, conseqüência da vida
desregrada; a AIDS, maldição divina
para castigar os promíscuos. Coube
à ciência demonstrar que duas bactérias e um vírus indiferentes às virtudes dos hospedeiros eram os
agentes etiológicos dessas enfermidades.
A crença na cura pela mente e a ignorância a respeito das causas de patologias complexas como o câncer,
por exemplo, são fontes inesgotáveis de preconceitos contra os que
sofrem delas. Cansei de ver mulheres com câncer de mama, mortificadas por acreditar que o nódulo maligno surgiu por lidarem mal com os
problemas emocionais. E de ouvir
familiares recriminarem a falta de
coragem para reagir, em casos de pacientes enfraquecidos a ponto de
não parar em pé.
Acreditar na força milagrosa do
pensamento pode servir ao sonho
humano de dominar a morte. Mas,
atribuir a ela tal poder é um desrespeito aos doentes graves e à memória dos que já se foram.
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