|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Doutrinação barata
Como controlamos a lei, nós a usaremos para impor nossos dogmas aos adolescentes
|
DISCUTÍAMOS DOSTOIÉVSKI .
Ocorreu-me mencionar um
personagem aparentemente
secundário, mas de fato importante,
de "Crime e Castigo" cuja trajetória
no romance me parecia uma de suas
melhores criações ficcionais. Lembrava seu papel, como aparecera na
trama, o que fizera, que fim levara.
Só que, na hora de dizer-lhe o nome,
ele não me vinha à mente. Por nada
neste mundo. Ninguém mais o recordava e, para piorar a situação, estávamos todos passando férias (pela
última vez na minha vida, juro) num
lugar remoto, sem bibliotecas nem
telefones.
Forcei a memória, arrolando nomes em ordem alfabética. Nada.
Evoquei na imaginação cada episódio relevante do romance e até cenas de um filme russo sobre ele cujos atores tinham os mais adequados "physiques du rôle" possíveis (o
sujeito era um russo maciço, corpulento sem ser gordo, de meia-idade e
da alta classe média), igualmente
sem resultado.
Reconstruí na cabeça os lugares e
horas em que li o livro, o que havia ao
redor, como me sentia, o que conversei com amigos a respeito. Ainda
assim, demorou dois dias para que,
de súbito, seu nome me viesse como
que por milagre: Svidrigailov.
Li "Crime e Castigo" no verão entre o fim do segundo colegial (segundo ano do segundo grau) e o começo
do terceiro. É claro que o escritor
russo me marcou profundamente e
guardo recordações vívidas de seus
livros bem como dos contextos de
minhas leituras. Essa era, no entanto, uma época na qual minha memória funcionava bem e as lembranças
que ficaram estendem-se não apenas a outras obras, como também a
outras áreas.
Eu cursava então um dos melhores colégios de São Paulo. O ano seguinte era o do vestibular e pelo menos metade de minha classe entrou
numa das três melhores escolas de
medicina, enquanto os demais ingressaram em bons cursos de odontologia, biologia, administração etc.
Se isso não depõe necessariamente a
favor de nossa inteligência, decerto
prova que a escola sabia maximizar
nossa capacidade de memorizar as
informações necessárias para atingirmos as metas propostas.
Mesmo assim, do grosso do que
aprendi lá, não resta nenhum vestígio em meus neurônios. E me refiro
não a disciplinas vagas, dependentes
de interpretação, mas às rigorosas
e/ou factuais: trigonometria e geometria analítica, ótica e química orgânica.
O que aconteceu? Meu cérebro
deve tê-las guardado num arquivo
provisório. Tão logo sua utilidade
terminou, os arquivos, ao contrário
daquele que continha "Crime e Castigo" (se bem que com a falha, que tive de reparar, no caso Svidrigailov),
foram "deletados".
Por sorte não estudávamos literatura estrangeira, senão Dostoiévski
teria provavelmente tido o mesmo
destino. Caso tivéssemos, como se
tornou há pouco obrigatório para o
ensino médio, cursos de filosofia e
sociologia, o que sucederia com suas
lições?
Cada qual de nós preserva em si
aquilo que o atrai, emociona, interessa. Professores e pais podem nos
obrigar a decorarmos tais ou quais
informações por razões pragmáticas. Estas, porém, literalmente não
"colam", ou seja, não se aderem a nada no interior de nossa consciência
ou do nosso subconsciente (se é que
isso existe). Respostas que antecedam as perguntas são piores que
inúteis, pois elas acabam ocupando
um lugar que, tornado ermo, não enseja mais que brotem naturalmente
certas indagações.
Para que, num país que mal ensina
(e ensina mal) coisas fundamentais
como matemática, escrita e leitura,
acrescentar essa sobrecarga que,
além de inútil e irrelevante, nem as
escolas privadas e muito menos as
públicas terão condições de ensinar
decentemente? Onde é que vão se
recrutar bons professores de filosofia e sociologia?
Naturalmente essa disciplinas
não serão minimamente bem ensinadas e todo mundo sabe disso. Não
há quadros, não há tempo, não há
verbas e, sobretudo, não há nem haverá interesse algum por parte das
vítimas potenciais, os alunos.
A resposta se torna evidente
quando ouvimos autoridades e os
interessados confessando, sem querer, seu objetivo real. Eles falam em
encorajar a visão ou pensamento
crítico. Essa expressão nojenta oculta, ou melhor, revela o ápice da arrogância: nossa maneira de pensar, que chamamos mentirosamente de
"crítica", é a certa, a única certa.
Como hoje controlamos a lei, nós
a usaremos para impor nossos dogmas aos adolescentes, impedindo-os de pensarem por conta própria.
Para que perder tempo com tentativa e erro se já temos todas as respostas? Enfim, sociologia e filosofia no ensino médio são apenas eufemismos. Seu nome verdadeiro é doutrinação barata.
Texto Anterior: "Quadrinhofilia" transita entre gêneros Próximo Texto: Cinema: Folha faz sessão de filme de Glauber Rocha Índice
|