São Paulo, segunda-feira, 09 de junho de 2008

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NELSON ASCHER

Doutrinação barata


Como controlamos a lei, nós a usaremos para impor nossos dogmas aos adolescentes

DISCUTÍAMOS DOSTOIÉVSKI . Ocorreu-me mencionar um personagem aparentemente secundário, mas de fato importante, de "Crime e Castigo" cuja trajetória no romance me parecia uma de suas melhores criações ficcionais. Lembrava seu papel, como aparecera na trama, o que fizera, que fim levara. Só que, na hora de dizer-lhe o nome, ele não me vinha à mente. Por nada neste mundo. Ninguém mais o recordava e, para piorar a situação, estávamos todos passando férias (pela última vez na minha vida, juro) num lugar remoto, sem bibliotecas nem telefones.
Forcei a memória, arrolando nomes em ordem alfabética. Nada. Evoquei na imaginação cada episódio relevante do romance e até cenas de um filme russo sobre ele cujos atores tinham os mais adequados "physiques du rôle" possíveis (o sujeito era um russo maciço, corpulento sem ser gordo, de meia-idade e da alta classe média), igualmente sem resultado.
Reconstruí na cabeça os lugares e horas em que li o livro, o que havia ao redor, como me sentia, o que conversei com amigos a respeito. Ainda assim, demorou dois dias para que, de súbito, seu nome me viesse como que por milagre: Svidrigailov.
Li "Crime e Castigo" no verão entre o fim do segundo colegial (segundo ano do segundo grau) e o começo do terceiro. É claro que o escritor russo me marcou profundamente e guardo recordações vívidas de seus livros bem como dos contextos de minhas leituras. Essa era, no entanto, uma época na qual minha memória funcionava bem e as lembranças que ficaram estendem-se não apenas a outras obras, como também a outras áreas.
Eu cursava então um dos melhores colégios de São Paulo. O ano seguinte era o do vestibular e pelo menos metade de minha classe entrou numa das três melhores escolas de medicina, enquanto os demais ingressaram em bons cursos de odontologia, biologia, administração etc. Se isso não depõe necessariamente a favor de nossa inteligência, decerto prova que a escola sabia maximizar nossa capacidade de memorizar as informações necessárias para atingirmos as metas propostas.
Mesmo assim, do grosso do que aprendi lá, não resta nenhum vestígio em meus neurônios. E me refiro não a disciplinas vagas, dependentes de interpretação, mas às rigorosas e/ou factuais: trigonometria e geometria analítica, ótica e química orgânica.
O que aconteceu? Meu cérebro deve tê-las guardado num arquivo provisório. Tão logo sua utilidade terminou, os arquivos, ao contrário daquele que continha "Crime e Castigo" (se bem que com a falha, que tive de reparar, no caso Svidrigailov), foram "deletados".
Por sorte não estudávamos literatura estrangeira, senão Dostoiévski teria provavelmente tido o mesmo destino. Caso tivéssemos, como se tornou há pouco obrigatório para o ensino médio, cursos de filosofia e sociologia, o que sucederia com suas lições?
Cada qual de nós preserva em si aquilo que o atrai, emociona, interessa. Professores e pais podem nos obrigar a decorarmos tais ou quais informações por razões pragmáticas. Estas, porém, literalmente não "colam", ou seja, não se aderem a nada no interior de nossa consciência ou do nosso subconsciente (se é que isso existe). Respostas que antecedam as perguntas são piores que inúteis, pois elas acabam ocupando um lugar que, tornado ermo, não enseja mais que brotem naturalmente certas indagações.
Para que, num país que mal ensina (e ensina mal) coisas fundamentais como matemática, escrita e leitura, acrescentar essa sobrecarga que, além de inútil e irrelevante, nem as escolas privadas e muito menos as públicas terão condições de ensinar decentemente? Onde é que vão se recrutar bons professores de filosofia e sociologia?
Naturalmente essa disciplinas não serão minimamente bem ensinadas e todo mundo sabe disso. Não há quadros, não há tempo, não há verbas e, sobretudo, não há nem haverá interesse algum por parte das vítimas potenciais, os alunos.
A resposta se torna evidente quando ouvimos autoridades e os interessados confessando, sem querer, seu objetivo real. Eles falam em encorajar a visão ou pensamento crítico. Essa expressão nojenta oculta, ou melhor, revela o ápice da arrogância: nossa maneira de pensar, que chamamos mentirosamente de "crítica", é a certa, a única certa.
Como hoje controlamos a lei, nós a usaremos para impor nossos dogmas aos adolescentes, impedindo-os de pensarem por conta própria. Para que perder tempo com tentativa e erro se já temos todas as respostas? Enfim, sociologia e filosofia no ensino médio são apenas eufemismos. Seu nome verdadeiro é doutrinação barata.


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