São Paulo, terça-feira, 09 de junho de 2009

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Auschwitz é bonito?


A pergunta é inevitável: será que a estética é independente de considerações éticas?


GOSTO DE polêmicas. Elas picam o cérebro como certos toureiros picam o touro. E o touro reage.
Portugal decidiu embarcar em aventura conhecida: eleger Sete Maravilhas que os portugueses, povo de marinheiros, espalharam pelo mundo. Existe uma lista inicial com 27 monumentos. O Brasil, recordista total, está representado com o Convento de Santo Antônio e Ordem Terceira, no Recife; com o Mosteiro de São Bento, no Rio; com o Convento de São Francisco, na Bahia; com o Mosteiro de São Bento, em Olinda; com a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto; com o Forte do Príncipe da Beira, na atual Rondônia; e com o Santuário do Bom Jesus, em Congonhas.
Subitamente, a indignação explodiu: historiadores de todo o mundo acusaram a organização do concurso de ocultar a terrível verdade. Para os indignados, alguns dos monumentos estão marcados pela vergonha da escravatura. É o caso da Fortaleza de São Jorge da Mina, em África, entreposto preferencial do tráfico. Os historiadores querem respeito pela história e exigem referência ao passado vergonhoso de Portugal. Que dizer?
Duas coisas. A primeira, óbvia, é que a intenção dos historiadores não é simplesmente científica. Ela insere-se na vetusta tradição contemporânea de pedir desculpas pelos crimes dos antepassados, como se a culpa fosse uma espécie de vírus que passa de geração em geração. Será? Em caso afirmativo, não há nenhum motivo para pararmos nos portugueses. Pior: não há nenhum motivo para pararmos na Europa.
Se a Europa colonizou África, outros povos colonizaram a Europa anteriormente. A história da civilização é, como diria Churchill, a história das suas guerras: da forma sucessiva como sucessivas civilizações foram conquistando e explorando as outras. Falar dos crimes do passado é falar de todos os crimes. E quem, honestamente, fica inocente nesse revisionismo total?
Se a ideia dos historiadores é expiar as culpas passadas, melhor seria que denunciassem os crimes presentes: em África, na Ásia, mesmo na América Latina. Como conta E. Benjamin Skinner, em obra obrigatória sobre a matéria ("A Crime So Monstrous"), existem hoje mais escravos do que em qualquer outro período da história humana. Skinner não fala do simples tráfico de mulheres, a única forma de "escravatura" que parece incomodar as consciências progressistas.
Skinner fala da servidão que existe em África, onde homens, mulheres e crianças são capturados em cenários de guerra e obrigados a trabalhar em campos ou pedreiras. Fala dos 10 milhões de escravos na Índia, obrigados a trabalho duro para pagar "dívidas transgeracionais". Pedir desculpas pelos crimes dos antepassados é um exercício inútil e, além disso, perfeitamente analfabeto.
Mas se os historiadores que protestam cometem o erro anacrônico de julgar o passado com as categorias do presente, a verdade é que também não concordo com os organizadores do concurso que defendem as "maravilhas" com critérios exclusivamente estéticos. A pergunta é inevitável: será que a estética é independente de qualquer consideração ética? Ou, dito ainda de outra forma, será possível apreciar determinadas obras artísticas sem perder tempo com a dimensão imoral que paira sobre elas?
Pessoalmente, sempre tive dúvidas. Acredito que Leni Riefenstahl seja um caso de talento no documentarismo germânico do século 20. Filmes como "O Triunfo da Vontade" ou "Olympia", no seu rigor iconográfico e na exaltação da força e da ordem, podem ser esteticamente impressionantes. Mas será possível apreciar Riefenstahl pelas qualidades puramente estéticas dos seus filmes? Será possível iludir, ou esquecer, que a "exaltação da força e da ordem" servia uma causa particular? Uma causa criminosa particular?
Não creio. Fechar a discussão estética nas qualidades puramente formais de uma obra implicaria posições moralmente insustentáveis. Implicaria que, no limite, fosse possível elogiar a belíssima arquitetura das câmaras de gás de Auschwitz sem atender aos milhões de seres humanos que foram assassinados debaixo de tanta "beleza".
Na polêmica das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, ambos os lados chafurdam no erro e na hipocrisia. Nenhum país deve pedir desculpas pela sua história. Mas nenhum país deve reduzir a sua história a uma simpática galeria de adornos. Os fantasmas não nos perdoariam.

jpcoutinho@folha.com.br


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