São Paulo, quarta-feira, 09 de junho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Fulgor de Wilson Bueno


O texto de Wilson Bueno se imiscui de popularesco e de erudito, de prosa e poesia. Um exemplo


COMPREI, AO LONGO dos anos, vários livros de Wilson Bueno, na esperança de algum dia escrever sobre ele. Tinham sido algumas páginas de seu extraordinário "Manual de Zoofilia" (Editora da Universidade Federal de Ponta Grossa, 1997) que me fizeram ter esse projeto.
Como acontece tantas vezes, os livros foram se empilhando, e só agora, ao ler no jornal que Wilson Bueno foi morto por um garoto de programa, pego para ler seu texto mais conhecido ("Mar Paraguayo", Iluminuras, 1992).
É um relato curto, narrado numa mistura de português, espanhol e guarani, por uma ex-prostituta, agora cartomante no balneário paranaense, que passa seus anos de decadência sustentada por um velho impotente e lúbrico.
"No, cream-me, hablo honesto y fundo: yo no matê a el viejo", diz a narradora, que conta como suportava, dia após dia, as investidas do seu companheiro, enquanto suas fantasias se voltavam para um adolescente de 17 anos, com quem tivera um único encontro sexual.
"Solamente, aflita de que lo sufocasse la respiración desenfrenada, o livrê de la manta, del aperto del colarinho e lo transportê de la cama para el sofá, aflita y un poco histérica y -por que no decirlo?- con una punta de oscuro ódio por su persistência vegetativa e alheada. Su sonrisa de gratidón y afago, aún los ojos hablassen en fúria, su sonrisa no posso comprovar porque subjetivo y particular, mas puedo decir, con rude honestidad, el aún vivia."
"Somente lo cambiê de assento e ya, la tarea de morir, propriamente dita, esta fue de exclusiva responsabilidad del viejo. De boca cheia puedo alardear, mismo que no se importen comigo: no fuê yo que lo matê, al viejo."
Por que o portunhol, com palavras em guarani de acréscimo, nessa novela? Fora o notável exercício de virtuosismo estilístico, vejo outras razões.
A primeira é que o espanhol permite certos lances patéticos, passionais, que associamos ao tango e à novela mexicana; a narrativa, que poderia ficar dramática demais, ganha assim um toque de ironia e voluntária falsidade.
Reforça-se, ademais, o hibridismo, sexual e estilístico, de todo o texto. A mulher paraguaia, tomada de desejo pelo adolescente de praia, também está perturbada pela visão de uma atriz da novela que vê todos os dias. O texto de Wilson Bueno se imiscui de popularesco e de erudito, de prosa e poesia. Um exemplo.
"Acá ficarê. La casa toda se va afundando en la noche de altíssimo otoño. Una que otra estrella ya está lá, fincada en el azul, nocturna y vésper, estrella, principalmente estrella."
Esse "principalmente", para qualificar "estrela", é uma absoluta maravilha, e dá ideia do modo com que Wilson Bueno conseguiu absorver, numa personalidade literária original, a influência de Guimarães Rosa -sem cair no tipo de imitação, perceptível a quilômetros de distância, tão frequente ainda no Brasil.
A imitação rosiana, aliás, é o que me fez tropeçar na leitura de outro livro de Wilson Bueno ("Meu Tio Roseno, a Cavalo", editora 34, 2000), que desde o próprio título presta uma homenagem explícita demais, acho, ao autor de "Sagarana".
Em "Amar-te a Ti Nem Sei Se Com Carícias" (Planeta, 2004), o pastiche não pesa tanto, porque o modelo, ninguém menos que Machado de Assis, exige uma sintonia bem mais fina. Leia-se um exemplo.
"Cousas mortas, geladamente mortas. De vivas, cuido que só a mariposa, o pirilampo, e as estrelas cadentes que, acabando de extinguir-se, num átimo ressurgem em prata e riscam a noite de Santa Tereza de um desusado fulgor."
Palavra que Wilson Bueno não economiza, "fulgor" soa como uma nota meio desafinada, de piano velho, nessa prosa de mestre.
Nesses livros, ele estava acertando suas contas com Guimarães Rosa e Machado de Assis. Mas em qualquer página que se abra de Wilson Bueno, esses astros literários convivem com muito mais coisas: acima de tudo, uma profusão de animais esquisitos, falantes, escuros, perversos; aranhas, mariposas, cavalos, homens, mulheres, que, por um tempo curto demais, Wilson Bueno iluminou com sua escrita, desusada e fulgurante.

coelhofsp@uol.com.br


AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris




Texto Anterior: Crítica/Fotografia: Wesely registra fantasmagoria do presente
Próximo Texto: Cinema: Filme perdido de Ford é encontrado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.