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NELSON ASCHER
Um concurso de beleza
É um mistério por que tanta gente de esquerda defende o modelo de capitalismo europeu
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ESTOU EM San Francisco, Califórnia, e, conforme me deleito com o que há por aqui, não
consigo resistir à tentação de comparar este país com a Europa, onde
vivi quase três anos. Não sou, aliás, o
único praticante desse hobby:
aprendi-o de fato na França, pois os
franceses, ingleses e demais europeus é que são comparadores obsessivos há pelo menos dois séculos.
Para os franceses, desancar os
EUA na mesma frase em que, modestamente, elogiam as infinitas virtudes de seu país, sua sabedoria, cultura, modo de vida etc. é um esporte
nacional. Segundo eles, os americanos são broncos e incultos; obesos e
desajeitados. Seu país se organiza de
forma errada. A França e o resto da
União Européia seriam o oposto disso. Parei de contar o número de vezes que franceses alugaram meus
ouvidos para desancar a América e
se colocarem no topo do mundo.
Quanto aos americanos, eles não
estão nem aí, nem com a Europa e os
europeus, nem com o que estes pensam. Os cidadãos daqui vivem sua
vida cotidiana sem imaginar que,
para seus rivais do outro lado do
Atlântico, todos se encontram num
perpétuo concurso de beleza. Mas já
que esse concurso de beleza idiota
existe para muitos e brasileiros metidos a cultos ou inteligentes e infectados pelo vírus da esquerdice anti-americana tomam majoritariamente o partido da Europa, talvez valha a
pena discuti-lo um pouco.
Ninguém em sã consciência duvida que, para fazer turismo cultural, a
Europa é o destino certo. Milênios
de história, ruínas greco-romanas,
basílicas românicas, catedrais góticas, o barroco internacional, para
nem falar de cidades, pequenas e
grandes, que conservam bastante de
seu passado na disposição das ruas e
em edifícios espalhados por toda
parte, quem procura coisas semelhantes deve se dirigir à Itália, à
França, à Espanha etc. O continente
tem tantos museus que, aos poucos,
ele se transformou num museu. Os
EUA, por seu turno, dispõem de alguns museus excelentes e alguns
monumentos interessantes, mas
nada que comece a rivalizar com o
Velho Mundo.
Os franceses, ingleses etc., quando
tecem suas comparações, não se restringem, no entanto, às justíssimas
do parágrafo anterior. Eles, por
exemplo, acreditam seriamente que
o ambiente deve, por osmose, contaminar os seres humanos, de modo
que, graças aos monumentos culturais com os quais convivem, seus
conterrâneos também seriam de algum modo mais civilizados, superiores ao resto da humanidade e, seguramente, melhores que os bárbaros transatlânticos. Que, proporcionalmente, mais americanos se graduem em universidades e que, em
geral, as universidades americanas
estejam acima das européias (com
exceção de Oxford e Cambridge) são
detalhes que parecem não contar.
Em última instância, porém, a discussão toda diz respeito aos modelos econômicos e sociais adotados
em cada lado do oceano. Não é segredo que, desde o fim da Segunda
Guerra, a Europa Ocidental começou a construir seriamente um Estado-babá no qual os "excessos" do
mercado seriam controlados e o governo cuidaria das principais necessidades da população: emprego e
renda, educação, saúde e até lazer. O
modelo se fundamentava em impostos altíssimos e gerou uma burocracia tão imensa quanto inerradicável, uma autêntica nova classe dominante. Já os EUA continuaram
mais fiéis ao liberalismo, se bem que
estejam longe de ser uma economia
puramente de mercado.
Como ambos os modelos são, no
fundo, capitalistas, é um mistério
para mim por que tanta gente de esquerda, que deveria abominar os
dois, defende hoje em dia passionalmente o europeu. Será que é porque
não sobrou nenhum paraíso a defender após 1989? Não existe Cuba?
E a Coréia do Norte? O que os move,
contudo, não é quanto tal ou qual
modelo se aproxima ou conduz à
utopia, mas, sim, quão explicitamente ele se apresenta como alternativa ao grande Satã.
A sociedade americana é, a olhos
vistos, mais afluente que as européias. Os números são claros: a renda per capita dos americanos está
entre 30% e 50% acima da dos europeus. Ademais, menos do que os
americanos ganham é confiscado
pelo Estado, o que redunda num nível mais alto de consumo. E somente os totalmente desinformados ainda defendem os serviços públicos
europeus que, nos principais países
do continente, estão caindo aos pedaços e chegando perto de uma crise
terminal. Outros índices também
favorecem os EUA: conforme a criminalidade tem diminuído aqui, ela
tem aumentado na Europa. Qual o
resultado, então, do concurso de beleza? Ora, cada jurado seguirá, como
sempre, votando não de acordo com
os fatos ou com a qualidade dos argumentos, mas apenas segundo as
suas crenças.
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