São Paulo, segunda-feira, 09 de julho de 2007

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NELSON ASCHER

Um concurso de beleza


É um mistério por que tanta gente de esquerda defende o modelo de capitalismo europeu

ESTOU EM San Francisco, Califórnia, e, conforme me deleito com o que há por aqui, não consigo resistir à tentação de comparar este país com a Europa, onde vivi quase três anos. Não sou, aliás, o único praticante desse hobby: aprendi-o de fato na França, pois os franceses, ingleses e demais europeus é que são comparadores obsessivos há pelo menos dois séculos.
Para os franceses, desancar os EUA na mesma frase em que, modestamente, elogiam as infinitas virtudes de seu país, sua sabedoria, cultura, modo de vida etc. é um esporte nacional. Segundo eles, os americanos são broncos e incultos; obesos e desajeitados. Seu país se organiza de forma errada. A França e o resto da União Européia seriam o oposto disso. Parei de contar o número de vezes que franceses alugaram meus ouvidos para desancar a América e se colocarem no topo do mundo.
Quanto aos americanos, eles não estão nem aí, nem com a Europa e os europeus, nem com o que estes pensam. Os cidadãos daqui vivem sua vida cotidiana sem imaginar que, para seus rivais do outro lado do Atlântico, todos se encontram num perpétuo concurso de beleza. Mas já que esse concurso de beleza idiota existe para muitos e brasileiros metidos a cultos ou inteligentes e infectados pelo vírus da esquerdice anti-americana tomam majoritariamente o partido da Europa, talvez valha a pena discuti-lo um pouco.
Ninguém em sã consciência duvida que, para fazer turismo cultural, a Europa é o destino certo. Milênios de história, ruínas greco-romanas, basílicas românicas, catedrais góticas, o barroco internacional, para nem falar de cidades, pequenas e grandes, que conservam bastante de seu passado na disposição das ruas e em edifícios espalhados por toda parte, quem procura coisas semelhantes deve se dirigir à Itália, à França, à Espanha etc. O continente tem tantos museus que, aos poucos, ele se transformou num museu. Os EUA, por seu turno, dispõem de alguns museus excelentes e alguns monumentos interessantes, mas nada que comece a rivalizar com o Velho Mundo.
Os franceses, ingleses etc., quando tecem suas comparações, não se restringem, no entanto, às justíssimas do parágrafo anterior. Eles, por exemplo, acreditam seriamente que o ambiente deve, por osmose, contaminar os seres humanos, de modo que, graças aos monumentos culturais com os quais convivem, seus conterrâneos também seriam de algum modo mais civilizados, superiores ao resto da humanidade e, seguramente, melhores que os bárbaros transatlânticos. Que, proporcionalmente, mais americanos se graduem em universidades e que, em geral, as universidades americanas estejam acima das européias (com exceção de Oxford e Cambridge) são detalhes que parecem não contar.
Em última instância, porém, a discussão toda diz respeito aos modelos econômicos e sociais adotados em cada lado do oceano. Não é segredo que, desde o fim da Segunda Guerra, a Europa Ocidental começou a construir seriamente um Estado-babá no qual os "excessos" do mercado seriam controlados e o governo cuidaria das principais necessidades da população: emprego e renda, educação, saúde e até lazer. O modelo se fundamentava em impostos altíssimos e gerou uma burocracia tão imensa quanto inerradicável, uma autêntica nova classe dominante. Já os EUA continuaram mais fiéis ao liberalismo, se bem que estejam longe de ser uma economia puramente de mercado.
Como ambos os modelos são, no fundo, capitalistas, é um mistério para mim por que tanta gente de esquerda, que deveria abominar os dois, defende hoje em dia passionalmente o europeu. Será que é porque não sobrou nenhum paraíso a defender após 1989? Não existe Cuba? E a Coréia do Norte? O que os move, contudo, não é quanto tal ou qual modelo se aproxima ou conduz à utopia, mas, sim, quão explicitamente ele se apresenta como alternativa ao grande Satã.
A sociedade americana é, a olhos vistos, mais afluente que as européias. Os números são claros: a renda per capita dos americanos está entre 30% e 50% acima da dos europeus. Ademais, menos do que os americanos ganham é confiscado pelo Estado, o que redunda num nível mais alto de consumo. E somente os totalmente desinformados ainda defendem os serviços públicos europeus que, nos principais países do continente, estão caindo aos pedaços e chegando perto de uma crise terminal. Outros índices também favorecem os EUA: conforme a criminalidade tem diminuído aqui, ela tem aumentado na Europa. Qual o resultado, então, do concurso de beleza? Ora, cada jurado seguirá, como sempre, votando não de acordo com os fatos ou com a qualidade dos argumentos, mas apenas segundo as suas crenças.


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