São Paulo, quarta-feira, 09 de julho de 2008

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Retorno à francesa

Depois do prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes, Sandra Corveloni protagoniza a peça franco-brasileira "O Retorno ao Deserto", um dos destaques do Festival de Rio Preto

Jorge Etecheber/ Divulgação
À frente, a atriz Sandra Corveloni durante ensaio do espetáculo

LUCAS NEVES
DA REPORTAGEM LOCAL

Na pele da mãe-coragem Cleuza do filme "Linha de Passe", Sandra Corveloni levou o prêmio de melhor atriz do Festival de Cannes, em maio passado. Dois meses depois, em sua volta ao teatro, ela dá trela ao flerte com a França (só trocando o balneário do sul do país por Metz, no Nordeste) no papel de... outra mãe-coragem.
É a Mathilde de "O Retorno ao Deserto", montagem franco-brasileira que é um destaques da programação do Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (SP), com abertura hoje (veja os destaques à direita).
Exilada por décadas na Argélia, a personagem volta à França, dois filhos a tiracolo, para reaver seu quinhão na herança paterna: a casa onde se instalou seu irmão, o usineiro Adrien. O texto de Bernard-Marie Koltès (1948-1989) sugere que, no passado, atos dele precipitaram o sumiço de Mathilde.
"Não se sabe se ela foi estuprada ou se se envolveu com um militar; o fato é que foi traída pelo irmão, com uma calúnia ou uma delação. Mathilde vem então para remexer essa terra, tirar essa sujeira toda do fundo e botar para fora, tocar fogo em tudo", diz Sandra, para quem o enredo ultrapassa a história da França: "Fala-se de preconceito, dor, maldade, traição e falta de delicadeza".
A atriz pegou o último trem para o deserto: só entrou no projeto em 25 de junho, depois de a intérprete inicialmente escalada se afastar por problemas de agenda. A essa altura, a trupe dirigida pela francesa Catherine Marnas ensaiava havia um mês. Para recuperar o atraso, trabalha 12 horas por dia.
Em cena, Mathilde (como boa parte dos personagens centrais) são duas: Sandra e a atriz francesa Bénédicte Simon. O que a primeira diz em português é imediatamente explicado ou reinterpretado em francês pela outra.
Na turnê brasileira (o espetáculo chega ao Sesc Vila Mariana, em São Paulo, no dia 17/7), Sandra ditará o tom da personagem. Quando a montagem chegar ao parisiense Théâtre de la Ville, nos próximos meses, a "hierarquia" será invertida. Para que o público não perca o fio da meada, haverá legendagem eletrônica.

Louca ou concreta?
"A Bénédicte faz a face mais louca, debochada da Mathilde. Eu vou mais no concreto, no dia-a-dia, nas explicações. É complementar. Se por um lado é um trabalho duplicado [pois tem de decorar também o texto em francês], por outro ajuda a revelar coisas que, sozinha, acho que não conseguiria", observa a atriz.
"A gente não combina nada de antemão, vai juntando as coisas a partir do jogo cênico. Esse duplo é como se fosse uma pessoa fora de foco, duas imagens sobrepostas. Às vezes, quando a Bénédicte faz algo que, para mim, escapa à personalidade da Mathilde, vou lá defendê-la [a personagem]. É como se o alter ego entrasse naquele momento para dizer: "olha, você está falando demais'", completa.
As réplicas em idioma estrangeiro, longe de intimidarem Sandra, parecem servir de estímulo extra: "Como o Koltès escreveu na língua dele, quando ouvimos o texto em francês é tão mais direto... o português é cheio de firula. A coisa dita em francês tem um impacto, uma força que não viria se só fizéssemos em português".

Atrito
No comando dessa Babel, Catherine Marnas saúda o intercâmbio de "experiências cênicas, códigos e estéticas", não sem apontar ruídos ao longo do caminho: "Não é fácil o tempo todo, não vou aqui bancar o United Colors of Benetton dizendo que tudo é ideal. É complicado, mas trata-se de um atrito interessante".
Para ela, o jogo de sombras que se vê no palco dá conta da esquizofrenia humana. "São as duas faces, ou 28, que todos nós temos... é o desdobramento do inconsciente -que, às vezes, toma a dianteira. Ele deixa escapar coisas que o personagem talvez tivesse pudor em dizer."
A diretora nega que Sandra tenha sido chamada para o papel em função do prêmio recebido em Cannes -a escalação, não custa lembrar, foi anunciada um mês após a conclusão do festival francês.
"Insisto: não queria que ela fizesse teste para o papel justamente por causa do prêmio. Pensei: vai trair a natureza do projeto. Acabei selecionando-a apesar do prêmio, porque vi que nada mudara em sua experiência de 15 anos como integrante de um grupo teatral [o Tapa]. Ela seguiu humilde."
Catherine conta que, no contato com o elenco brasileiro, identificou uma "generosidade total, sem reservas" da qual os franceses, empedernidos "em sua linha cerebral, "mas por que isso?'", carecem.
A encenadora avalia que "as feridas de guerra (as duas mundiais e a da Argélia) deixaram uma amargura inconsciente" em seu país: "Nos privamos de uma certa ingenuidade, muito associada à tolice, mas que, na verdade, é uma bela qualidade". Koltès, pensa ela, ajuda a expurgar esses fantasmas. "Tem essa qualidade de expulsar abscessos de nós. Há bolhas em putrefação no fundo de nós que o teatro permite estourar. É uma função quase psicanalítica."


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