|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RIACHÃO
Artista é mosca na sopa do caldeirão baiano
DA REPORTAGEM LOCAL
Algo de estranho acontece
na Bahia. Tanto os jovens do
pop local como o quase octogenário Riachão parecem reconhecer
os laços que os unem, mas mesmo
assim não parecem se bicar muito
uns com o outro.
Mais que isso, parece haver
mesmo um abismo cultural entre
eles, que se chamaria porventura
conflito de gerações, ignorância
musical, regime militar, ACM,
mercantilismo desenfreado, filosofia artística...
O que se vê, na virada dessa curva, é que há partículas escondidas
por debaixo do tapete da cordialidade baiana.
A volta de Riachão à música,
concomitante à decadência comercial da axé music, pode ser em
2001 a mosca da sopa que faltava
nesse caldeirão.
A grande família bipartida cria,
a esta altura, filhos como os produtores e também artistas Paquito e J. Velloso, que ousam se opor
à máquina de fazer dinheiro e
bancar discos magníficos como o
hoje já desaparecido "Diplomacia" (EMI, 98), de Batatinha (que
morreu antes de ver seu CD chegar às lojas), e este "Humanenochum", de Riachão, que esperou
mais de um ano para ser lançado
sem despertar interesse de nenhuma grande gravadora.
Afora a falta de referências sobre o assunto fora da Bahia, não
há por que desacreditar dos produtores, que definem Riachão e
Batatinha como os dois baluartes
mais importantes da tradição do
samba da Bahia.
Opostos complementares, o
compenetrado Batatinha e o estabanado Riachão formam raízes
vitais da árvore frondosa da música baiana.
Ainda que uns e outros negassem o samba em várias passagens
de suas carreiras, a tristeza de Batatinha está em Caetano Veloso,
Maria Bethânia e Gal Costa como
a alegria de Riachão está em Gilberto Gil, Carlinhos Brown e Daniela Mercury. Ou vice-versa, ocasionalmente. O samba os une e
desune, a todos.
Riachão, como se ouve no disco
agora lançado, faz samba bom,
mas menos sofisticado e elaborado que o de Batatinha. Por entre
frases ricas de simplicidade (como "olha pra cima, o que é que vê/
vê o elevador Lacerda/ que vive a
subir e descer", na tocante "Retrato da Bahia"), ele faz a crônica de
sua terra e se move desordenadamente pela música.
Nesse bailado, oscila entre pequenas confusões, pequenos
achados, reluzente instrumental
sambista, uma ou outra obscura
faísca de gênio.
Assim fluem "Choro nš 1", "Não
Fale Comigo Agora", "Até Amanhã" (aqui dividida majestosamente com Ivone Lara), "Somente Ela", as semiconhecidas "Cada
Macaco no Seu Galho" (que Caetano e Gil gravaram duas vezes,
em 72 e 93) e "Vá Morar com o
Diabo" (presente no disco mais
recente de Cássia Eller).
Ali, Riachão é instinto e vitalidade. Nesse sentido, linguagem estranha (exemplo é o inexplicável
termo "humanenochum" que denomina o disco), picardia às vezes
tenuemente maliciosa e a sabedoria que não vem dos bancos escolares o unem a Carlinhos Brown e,
até, aos fracos letristas de axé.
Brown nunca trouxe muito a
público sua congruência com
Riachão, mas a impagável "Pitada
de Tabaco", que arranjou e canta
com o professor informal, reata
alguns elos perdidos. É samba,
axé e timbalada, moderna e antiquada de uma vez -o próprio espírito tropicalista.
Tropicália
A tropicália, aliás, está presente
no CD com dois de seus fundadores: Tom Zé faz versão cortante e
idiossincrática de "Cada Macaco
no Seu Galho", em reflexo espelhado com a interpretação de
Caetano Veloso para "Vá Morar
com o Diabo".
Cantando feito sambista da antiga, Caetano comenta a um tempo a tropicália e o que ela negou
-e é, ainda, o líder da única geração baiana que soube valorizar
batatinhas e riachões, ainda que
por períodos intermitentes.
A faixa de Caetano fica, no disco, ao lado de "Retrato da Bahia",
cantada pelo sôfrego Riachão
com a colega de geração Claudete
Macedo, menos conhecida ainda
do que ele. Tudo o que se pode
pensar sobre o que a Bahia criou
e/ou abandonou está guardado
na voz calma de Claudete.
Coisas muito estranhas acontecem na Bahia.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)
Humanenochum
Artista: Riachão
Lançamento: Caravelas
Quanto: R$ 25, em média
Texto Anterior: Isto é Riachão Próximo Texto: Mônica Bergamo Índice
|