São Paulo, quinta-feira, 09 de agosto de 2001

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RIACHÃO

Artista é mosca na sopa do caldeirão baiano

DA REPORTAGEM LOCAL

Algo de estranho acontece na Bahia. Tanto os jovens do pop local como o quase octogenário Riachão parecem reconhecer os laços que os unem, mas mesmo assim não parecem se bicar muito uns com o outro.
Mais que isso, parece haver mesmo um abismo cultural entre eles, que se chamaria porventura conflito de gerações, ignorância musical, regime militar, ACM, mercantilismo desenfreado, filosofia artística...
O que se vê, na virada dessa curva, é que há partículas escondidas por debaixo do tapete da cordialidade baiana.
A volta de Riachão à música, concomitante à decadência comercial da axé music, pode ser em 2001 a mosca da sopa que faltava nesse caldeirão.
A grande família bipartida cria, a esta altura, filhos como os produtores e também artistas Paquito e J. Velloso, que ousam se opor à máquina de fazer dinheiro e bancar discos magníficos como o hoje já desaparecido "Diplomacia" (EMI, 98), de Batatinha (que morreu antes de ver seu CD chegar às lojas), e este "Humanenochum", de Riachão, que esperou mais de um ano para ser lançado sem despertar interesse de nenhuma grande gravadora.
Afora a falta de referências sobre o assunto fora da Bahia, não há por que desacreditar dos produtores, que definem Riachão e Batatinha como os dois baluartes mais importantes da tradição do samba da Bahia.
Opostos complementares, o compenetrado Batatinha e o estabanado Riachão formam raízes vitais da árvore frondosa da música baiana.
Ainda que uns e outros negassem o samba em várias passagens de suas carreiras, a tristeza de Batatinha está em Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa como a alegria de Riachão está em Gilberto Gil, Carlinhos Brown e Daniela Mercury. Ou vice-versa, ocasionalmente. O samba os une e desune, a todos.
Riachão, como se ouve no disco agora lançado, faz samba bom, mas menos sofisticado e elaborado que o de Batatinha. Por entre frases ricas de simplicidade (como "olha pra cima, o que é que vê/ vê o elevador Lacerda/ que vive a subir e descer", na tocante "Retrato da Bahia"), ele faz a crônica de sua terra e se move desordenadamente pela música.
Nesse bailado, oscila entre pequenas confusões, pequenos achados, reluzente instrumental sambista, uma ou outra obscura faísca de gênio.
Assim fluem "Choro nš 1", "Não Fale Comigo Agora", "Até Amanhã" (aqui dividida majestosamente com Ivone Lara), "Somente Ela", as semiconhecidas "Cada Macaco no Seu Galho" (que Caetano e Gil gravaram duas vezes, em 72 e 93) e "Vá Morar com o Diabo" (presente no disco mais recente de Cássia Eller).
Ali, Riachão é instinto e vitalidade. Nesse sentido, linguagem estranha (exemplo é o inexplicável termo "humanenochum" que denomina o disco), picardia às vezes tenuemente maliciosa e a sabedoria que não vem dos bancos escolares o unem a Carlinhos Brown e, até, aos fracos letristas de axé.
Brown nunca trouxe muito a público sua congruência com Riachão, mas a impagável "Pitada de Tabaco", que arranjou e canta com o professor informal, reata alguns elos perdidos. É samba, axé e timbalada, moderna e antiquada de uma vez -o próprio espírito tropicalista.

Tropicália
A tropicália, aliás, está presente no CD com dois de seus fundadores: Tom Zé faz versão cortante e idiossincrática de "Cada Macaco no Seu Galho", em reflexo espelhado com a interpretação de Caetano Veloso para "Vá Morar com o Diabo".
Cantando feito sambista da antiga, Caetano comenta a um tempo a tropicália e o que ela negou -e é, ainda, o líder da única geração baiana que soube valorizar batatinhas e riachões, ainda que por períodos intermitentes.
A faixa de Caetano fica, no disco, ao lado de "Retrato da Bahia", cantada pelo sôfrego Riachão com a colega de geração Claudete Macedo, menos conhecida ainda do que ele. Tudo o que se pode pensar sobre o que a Bahia criou e/ou abandonou está guardado na voz calma de Claudete.
Coisas muito estranhas acontecem na Bahia.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)


Humanenochum
   
Artista: Riachão
Lançamento: Caravelas

Quanto: R$ 25, em média



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