São Paulo, Segunda-feira, 09 de Agosto de 1999
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LITERATURA
Carlos Nejar incorpora a confluência rebelde

ADRIANO ESPÍNOLA
especial para a Folha

No prólogo ao "Jardim dos Caminhos que se Bifurcam", Jorge Luis Borges adverte-nos do desvario laborioso e empobrecedor que é o de explanar em 500 páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento, diz ele, é o de simular que esses livros já existem.
Essa advertência vem a propósito da obra de Carlos Nejar, também tradutor de Borges. Entretanto é preciso discordar da ironia do bruxo argentino. Explanar em minutos a vasta produção literária do poeta gaúcho é, por certo, redutor; tampouco podemos simular a existência de seus livros, muitos dos quais já pertencem à história da literatura brasileira.
Mas talvez nos seja possível discorrer sobre sua criação baseados em uma idéia: trata-se de um escritor em que se manifesta uma espécie de confluência rebelde. O que isso quer dizer? Se o poeta incorpora as observações do mundo exterior, sabe ao mesmo tempo erodir as referências mais diretas com intensos golpes metafóricos e incisões rítmicas, buscando o canto que o prende à árvore do mundo e dela o desprende. Essa estratégia atravessa toda a sua obra, não raro desdobrada em alegorias da condição humana.
Com isso, faz com que a palavra se torne acesa e vigorosa, situada entre a intervenção e a invenção, como salientamos em prefácio a "Os Dias pelos Dias" (97), em que Nejar reúne três de seus mais importantes livros: "Canga" (71), "O Poço do Calabouço" (74) e "Árvore do Mundo" (77).
Neles, a voz do poeta tem qualquer coisa de indignação feroz, friccionada entre a esperança da liberdade e o desespero. Ou entre a denúncia e a recriação verbal, ambas vibrantes.
De outro lado, o escritor sabe congregar as mais diversas formas para dissolvê-las em gêneros diferentes. E aí encontramos o dramaturgo ("Teatro em Versos", 98), o romancista ("Um Certo Jacques Netan", 91; "O Túnel Perfeito", 93; "Carta aos Loucos", 98) e o ensaísta ("A Chama É um Fogo Úmido", 94). Em todas essas incursões, identificamos o habitante da linguagem e de seu núcleo poético. Eduardo Portella diz que ele é "um poeta da poesia, mais que do verso".
Mesmo no interior da poesia, enquanto gênero, a inquietação leva-o a transitar do lírico ("A Casa dos Arreios", 73; "Amar, a Mais Alta Constelação", 91; "Elza dos Pássaros", 93) ao épico ("Um País o Coração", 80; "Simón Vento Bolívar", 93) e do épico ao dramático, em movimento circular. A prova está em "Os Viventes" (79), verdadeira galeria de tipos da nossa conturbada humanidade.
Surgindo, em 1960, com "Sélesis", Carlos Nejar soube marcar um espaço único na literatura nacional. Porque, em síntese, nela ocorre a confluência inconformada das percepções histórica e mítica, participante e transcendente, para torná-la a um só tempo testemunha de nossa época e reafirmação superlativa da imaginação transfiguradora.


Adriano Espínola, 47, é poeta e professor da Universidade Federal do Ceará. É autor de "Em Trânsito" (1997) e "Beira-Sol" (1998).


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