São Paulo, terça-feira, 09 de setembro de 2008

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

O amor é uma arte


Ovídio não perde tempo com metafísicas; o amor é uma técnica que pode ser ensinada e apreendida

AH, OS CLÁSSICOS! Falamos deles e alguém boceja. Inevitável: um dos grandes crimes da nossa cultura é tratar os grandes livros da tradição ocidental com uma reverência provinciana, matando todo o prazer que temos em lê-los. Homero, para mim, sempre foi um dos melhores escritores de aventuras. O Júlio Verne da Grécia Antiga. E, ao ler as viagens de Ulisses e as fúrias de Aquiles, sempre imaginei Steven Spielberg dirigindo o filme. Só depois, muito depois, mergulhei nos mitos, na métrica, nas alegorias. Na filosofia. Primeiro, veio o prazer.
O mesmo para Ovídio, o poeta romano que o imperador César Augusto condenou ao exílio. Escreveram-se quilômetros de teses profundas sobre o vate. Mas nada substitui o prazer inocente e vital de o lermos com a cabeça limpa e a alma aberta.
Aconteceu comigo: sob um sol generoso, com o mar Mediterrâneo banhando-me os pés, li e ri com a sua "Arte de Amar" (tradução portuguesa de Carlos Ascenso André), o livrinho ultrajante que provavelmente o condenou à morte lenta. O livro é, como o título indica, um tratado sobre o amor. Mas não sobre o significado do amor; Ovídio não perde tempo com metafísicas. O amor é uma arte, ou seja, uma técnica que pode ser ensinada e apreendida. E o propósito de Ovídio é simples: escrever um manual que ensina homens e mulheres a conquistar e a conservar o amor.
Está tudo lá. Para os homens, um primeiro conselho: o amor não acontece; é preciso procurá-lo, de preferência onde há mulheres. E, se os leitores acham que os lugares ideais são as discotecas de sábado à noite, Ovídio discorda. Lugares de álcool prejudicam o julgamento. Melhor apostar nos lugares de cultura, como os teatros, onde há abundância e variedade. E sobriedade.
E depois do local, a estratégia: Ovídio ensina como os homens devem aproximar-se do alvo; como devem sentar-se ao lado dele; quais as primeiras palavras a serem ditas e trocadas (que devem ser simples e triviais, sem afetação ou vaidade); e, se vocês julgam que os metrossexuais levam vantagem no jogo, desenganem-se: Ovídio desaconselha pernas raspadas ou cabelos frisados. As mulheres gostam de homens com ar de homens. Só a limpeza é fundamental: das unhas à roupa, dos pêlos do nariz ao mau hálito, nada escapa à pena microscópica deste cupido letrado.
Mas o amor não se conquista apenas; é preciso conservá-lo depois da caçada. E não existe outra forma de conservá-lo que não passe pela amabilidade. Sê amável, diz o poeta, porque a tua beleza não será eterna; ela é um bem passageiro e frágil. Não sejas orgulhoso; não tenhas medo de ceder nas tempestades. E, se julgas que a tua amada se conserva com prendas caras, repensa: as verdadeiras prendas são aquelas que escolhemos com inteligência e entusiasmo. E ignora os defeitos: todos os defeitos da mulher que amas acabam por se suavizar com o tempo, até ao momento em que se tornam virtudes ou marcas íntimas e pessoais.
Por último, o equilíbrio frágil: o amor só sobrevive se, sobre ele, pairar uma sombra de perda. É necessário que a amada sinta, por vezes, que pode te perder: "Aquece-lhe o coração morno", diz Ovídio, "ateia as chamas, com a força de um sopro". Não existe maior verdade: a rotina é o veneno dos amantes; o ciúme é o sal que dá sabor ao prato.
E conselhos para as mulheres? A "Arte de Amar" é composto por três livros; só o último é dedicado ao público feminino. Existem repetições: evitar homens excessivamente cuidados, por exemplo. Ou, então, ter especial cuidado com a higiene do cabelo, do corpo, dos dentes. E alguns truques para disfarçar defeitos: se a mulher é pequena, que prefira estar sentada; se tem dedos gordos e unhas sujas, que evite gestos demorados; e, se os dentes são tortos ou grandes, que controle as risadas.
Mas a mensagem central é uma exortação libertária: a vida é veloz e breve; e o amor deve ser colhido nos verdes anos. As mulheres nada ganham se adiarem continuamente as paixões até que a velhice se instale. Devem, pelo contrário, ofertar os prazeres aos homens, mas nunca de forma descarada: a paixão vive da tensão constante entre a recusa e a entrega, uma dança que aguça o desejo. Mas, no fim, deve triunfar a entrega. De preferência com a luz apagada.
Moral da história? Eu prometo oferecer este livro às minhas amigas. E com as melhores passagens sublinhadas.

 
P.S.: Na próxima semana não haverá coluna. Volto de Nova York dia 23 de setembro.

jpcoutinho@folha.com.br



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