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67º FESTIVAL DE CINEMA DE VENEZA
Kechiche choca com tragédia do corpo negro
Diretor tunisiano leva à tela história
de africana explorada como fera
O filme "Vénus Noire" dividiu a plateia ontem no festival de cinema de Veneza ao retratar caso real do século 19
ANA PAULA SOUSA
ENVIADA ESPECIAL A VENEZA
Autor de uma obra sólida
tanto estética quanto politicamente, o tunisiano Abdellatif Kechiche terá de enfrentar, pela primeira vez, um
questionamento ético.
"Vênus Noire" (Vênus negra), memorável filme exibido em competição, arrebatou
parte da plateia e desagradou outra parte.
A divisão evidenciou-se
durante a entrevista à imprensa em Veneza, aberta
com uma pergunta sobre a
(re)exploração da tragédia
que o filme pretende retratar.
Vênus é a africana Saartjie
Baartman que, no início do
século 19, foi tirada de seu
país e levada para a Europa.
Em Londres e Paris, ela fazia espetáculos como uma fera que era tão ameaçadora
quanto sedutora.
Esses números, mostrados
várias vezes, são o fio condutor do filme. A cada cena, é
mais doloroso vê-los.
Questionado sobre a "multiplicação" da cena, o cineasta disse, simplesmente, não
tê-la multiplicado.
"Há uma evolução rumo a
um corpo cada vez mais explorado, fatigado até a mutilação. Quero mostrar o olhar
sobre esse corpo."
Consciente da dureza do
filme, acrescentou: "Não me
preocupo com a resistência
do espectador".
XENOFOBIA
"Vênus Noire" impõe ao
público uma reflexão sobre
seu próprio olhar. Apesar de
recuperar uma história do século 19, Kechiche quer provocar sensações que remetam ao presente.
O cineasta começou a pensar nesse filme no ano 2000,
quando a África do Sul solicitou, à França, a devolução do
corpo de Baartman.
Seus restos estavam no
Museu do Homem. Com o
corpo, voltou para a África a
estátua feita pela Academia
de Medicina, que usou Baartman, contra sua vontade, para criar uma teoria científica.
"Esse corpo continuou
sendo explorado no século
21", diz Kechiche.
Outro aspecto da história a
atrair o cineasta, que tratou
da vida dos imigrantes na Europa no premiadíssimo "O
Segredo do Grão", foi a construção do olhar coletivo.
"As teorias cientificas da
época impulsionaram o fascismo. É importante retomar
esse passado porque a Europa vive um discurso xenófobo e racista", afirma.
No papel da mulher que é,
para todos, um corpo raro e
lucrativo, mas inferior, está
Yahima Torrès, que nunca
havia trabalhado como atriz.
Como os personagens, somos expostos ao seu corpo.
Mas somos expostos também
ao seu rosto, à sutileza de cada expressão e ao mistério de
suas poucas palavras.
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