|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Para Diane Arbus
Entre 25 de outubro e 8 de
fevereiro de 2004, o Museum
of Modern Art de San Francisco
oferece "Diane Arbus: Revelations". É a maior retrospectiva
realizada até hoje da obra de Diane Arbus, a fotógrafa nova-iorquina que, entre 1959 e 1971, jogou seu olhar inigualável e inquietante sobre a modernidade
urbana. O catálogo é publicado
pela Random House.
Complemento indispensável, no
museu de arte do Mount Holyoke
College (Massachusetts) está
aberta até 7 de dezembro a exposição: "Diane Arbus: Family Albums" (catálogo pela Yale University Press).
Nota: existe uma boa biografia
de Diane Arbus, escrita por Patricia Bosworth, "Diane Arbus: a
Biography".
Durante os anos 50, Diane e o
marido, Allan Arbus, foram fotógrafos de moda para a "Vogue" e
a "Glamour". Era, aparentemente, um pequeno conto de fadas:
uma infância privilegiada na
Park Avenue, um casamento feliz
aos 18 anos, duas filhas adoráveis
e o sucesso.
No fim da década, o cartão-postal rachou: o casal separou-se e
Diane, lutando contra episódios
depressivos, foi fotografar o mundo do outro lado do espelho. Começou a frequentar os circos ambulantes, o show de "freaks"
(monstros) que ainda existe no
parque de atrações de Coney Island, em Brooklyn, e outro que
funcionava na esquina da rua 42
com a Broadway, entre sex shops
e prostitutas.
Uma década de retratos começou assim, com Presto, o comedor
de fogo, Jack Drácula, o homem
tatuado, Gregory Ratoucheff, o
anão russo, Moondog, o percussionista de rua cego, Seal-Boy, o
menino-foca sem braços. Logo foi
a vez de travestis, transexuais, sadomasoquistas e adeptos do suingue: à primeira vista, um catálogo
da marginalidade destoante.
Diane, o equipamento pesado a
tiracolo, tornou-se uma figura familiar das ruas e dos porões nova-iorquinos.
Entre 1959 e 1967, ela manteve
uma amizade telefônica com um
grande escritor, Joseph Mitchell.
Dele, a Companhia das Letras
traduziu recentemente "O Segredo de Joe Gould" (leia assim que
puder; também assista ao maravilhoso filme homônimo, de 2000,
de e com Stanley Tucci). Mitchell,
que escrevia para "The New Yorker", é um extraordinário cronista do cotidiano, um passeante à
escuta dos derrotados: desde Joe
Gould, o alcoólatra sem-teto decidido a registrar todas as palavras
humanas numa "História Oral"
do mundo, até Olga, a mulher
barbuda que queria ser estenógrafa.
Mitchell e Diane Arbus nunca
se encontraram, embora deambulassem pelas mesmas ruas, um
com caneta e bloco no bolso e a
outra com Rollei e Leica no pescoço. Mas falavam por telefone longa e regularmente.
Numa dessas conversas, Diane
explicou seu interesse pelos
"freaks": "As pessoas atravessam
a vida com medo de ter uma experiência traumática. Os "freaks"
já nasceram com seu trauma.
Passaram no teste da vida. Eles
são aristocratas".
Numa outra conversa com Mitchell, ela afirmou que fotografar o
estranho era uma maneira de administrar sua própria melancolia.
Como? Em cada retrato de
"freak", contemplamos o mistério
da existência de quem carrega
consigo, na excentricidade de seu
corpo ou de seus desejos, uma
promessa de exclusão feroz. O
"freak" ergue-se diante da câmara, risonho ou doloroso, num desafio: persiste na vida, embora conheça dos outros sobretudo a curiosidade impiedosa, fascinada
ou horrorizada.
Ele é um protótipo de herói moderno porque sabe como ninguém que a insistência dos olhares não é cura para a solidão.
Diane conhecia esse suplício.
Dramaticamente insegura quanto à apreciação de sua obra, procurava na promiscuidade das esquinas o exemplo corajoso dos sobreviventes do deserto urbano.
Durou um tempo.
No fim, queixava-se: por que
Allan e ela, mesmo separados,
não continuariam juntos como
irmãos, num vínculo que nunca
poderia ser rompido? O laço de
sangue parecia-lhe ser o último
reduto em que, para poucos próximos, não seríamos "freaks".
De fato (é esse o interesse da exposição de Mount Holyoke), no final dos anos 60, Diane começou a
fotografar famílias "comuns":
instantâneos de papai, mamãe e
molecada ao lado da árvore de
Natal, na beira da piscina, no sofá
da sala. Mas sua própria arte destruía sua esperança: inexplicavelmente, o olhar de Arbus descobre
o "freak" em qualquer um. Os álbuns de família revelam que a solidão e o estranhamento assombram o aparente aconchego do
lar.
Repetidamente, durante a década de sua produção, Diane fotografou um homem de dois metros e meio que sofria de uma
doença óssea, Eddie Carmel, o gigante judeu. Os retratos não a satisfaziam. Enfim, pensou ter
"conseguido": é a famosa fotografia do gigante, na sala de casa, ao
lado dos pais, ambos de tamanho
normal. Anunciou a Mitchell:
"Sabe como cada mulher grávida
tem o pesadelo de que o filho poderia ser um monstro? Acho que
consegui fotografar esse pesadelo
na cara da mãe que olha para o
filho, lá em cima, e parece pensar:
"Meu Deus, isso não!'".
Nem o olhar de uma mãe ampara o "freak" contra sua monstruosidade. E somos todos
"freaks".
Em 1971, aos 48 anos, Diane
deitou-se na banheira, tomou
barbitúricos, cortou os pulsos e
nos deixou mais sozinhos do que
já éramos.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Documentário: Filme apresenta múltiplas visões da velhice Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: Filme de Paulo Thiago compete em Huelva Índice
|